domingo, 15 de janeiro de 2012

a grandeza de um homem é diretamente proporcional à paixão que ele sente

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Sentia-se inerte. O mundo dando trotes rápidos como quem quer chegar, mesmo brusco, a um destino qualquer. Ainda assim, situava-se alheia a tudo aquilo - ao som da buzina no portão, ao compromisso desimportante, às conversas banais. Prendia-se em algo muito mais complexo, embora também tão escuro, e percebia um novo, e outro, e mais um nó, imbricados, interpenetrando-se mais fortes a cada segundo corrente - crente da impossibilidade de reabri-los.
De que forma era possível que tantas verdades escorressem pelas paredes descascadas, progressivamente impregnadas de mofo, a sujeira antes escondida ameaçando a aparecer. Era como se tivesse quebrado o olho mágico através do qual era capaz de enxergar, como se, afinal, nada houvesse sido real.
Então foi só mais um engano? Por dentre o universo de promessas bem feitas, verdades coloridas, olhares galácticos e todo o resto, irrelevante e essencial, não era ele? Ou então, não seria mais ela: e pensou em bipolaridade, depressão, esquizofrenia e borderline, tentando buscar, no mais escondido de dentro de si, o porquê de enxergar no espelho de hoje outro ser que não o de antes.
A própria rosa em todo o seu simulacro de presente, tão viva dias atrás, mas intrinsecamente dotada de duas faces: como havia se camuflado tão perfeitamente? A essência e aparência, sinônimos exatos, concomitantemente contraditórios. Olhava para ela, para ele, para o indeterminado das coisas que já deveriam deter um significado fixo, imutável – e detiveram– até dissipar-se entre as milhares de partículas invisíveis que as rodeavam.
De que maneira manter-se-ia estática quando o tripé que nele a segurava dividiu-se em três estacas solitárias espalhadas pelo chão? Ou, então, como passaria a andar, na medida em que as mesmas estacas reorganizavam-se em grade infinita frente a todas as passagens importantes? Reduzir-se ao imenso vazio de si, à incompreensão do estar, em meio a todos, solitário por não saber traduzir o encontro de seu antigo e novo ser, ou verdadeiro e falso, ou doente e são – enquanto o resto circundante parece ser infectado pelo vírus que nela flui: quando você chora os outros também sofrem, menina.
Doía sentir a dor dos demais causada por sua própria dor, já que não entendia de onde a mesma havia surgido: por que despertara após séculos de sono profundo, respiração ofegante, sonhos lúcidos? Queria submeter-se aos mais diversos xamãs e curandeiros, talvez atores da inserção de um efeito simbólico voltado a fazê-la dormir, feito a dor recém acordada e mal educada – que instalou-se escondida, mas súbita, sem garantir explicações ou cumprimentos, nem um bom dia ou como estás – sempre iniludível.
Teve medo de a montanha russa ser essencial, chorou baixinho por pensar que, talvez, as fases cíclicas fossem alguma espécie de karma fatal, discrepância do destino. Perderia, então, toda a espontaneidade? Sabendo que a gangorra estava constantemente em movimento e, impotente, deveria esperar que voltasse a descer, logo, de uma vez – ou, então, contentar-se com um improvável equilíbrio de balanças? Não se satisfaria com qualquer das opções.
Almejava desesperadamente deter o que tivera ontem, e antes de ontem, e antes ainda, mesmo que não encontrasse explicação ou significado – ainda que atirada a uma ilusória imagem fraca e distorcida da resposta –, não importava: ansiava por seu mix de luzes claras-cegantes, seu brilho transcendental, feito dança de vagalume, subindo de volta ao posto de onde nunca devia ter se permitido descer.
Mas a dor, ah, concorrente perigosa: espera cínica e paciente o pesar dos olhos do parceiro, para empurrar seus pés forte no chão e alçar-se para cima, empurrando-o inevitavelmente ao solo. É a gangorra da vida, supôs, tanto convencida quanto inconsolável.
Sempre acreditou no eterno como imediato, sutilmente enganando-se, assim, no advento dos fonemas do infinito. Se sabia tanto acerca das facetas escancaradas da verdade, como voltar atrás? Uma vez dentro, o caminho frente às suas lentes coloridas – distorcidas, talvez (não dispensava nenhuma possibilidade) – se anunciava como inevitável, não passível de qualquer desvio ou mesmo retorno, ainda que sua clareza limitasse-se à pura forma. O conteúdo, como era de se esperar, aguardava essencialmente obscuro.
E lembrou-se daquele dia no qual se sentiu exatamente da mesma forma em que hoje, mas recuando a passos largos, resistindo imensamente a qualquer vontade exterior capaz de tirá-la de seu lugar comum ao lado dele – aquele onde todas (todas?) desejariam encontrar-se – fingiu sustar sua dívida com a lealdade da consciência. Pensou nas incontáveis possibilidades que havia incinerado, nos defeitos pré-julgados que atribuía aos demais – pois lançá-lo de plataformas de vôo exigiu afogar qualquer sombra igualmente humana, por abarcar tal pressuposto e só – e pensou então que nem valia mais a pena voltar atrás. Obrigava-se, assim, a reconhecer que o plano da verdade não era diverso, que a perfeição consistia em caráter objetivo e imutável – jamais passível de contraponto.
A culpa inerente à sua limitação visual a corroia de parte a parte, completando cada centímetro capaz de pensar-se como dotado do direito de, simplesmente, não ser mais capaz de enxergar. Estruturava-se, dessa forma, um abrir de olhos voltados estritamente à esperança do futuro, cego e cambaleante tanto a memórias passadas quanto à configuração do presente.
Não podia aceitar que o amor ideal não consistia em ideal para si, como se ela fosse dotada exclusivamente do poder da insatisfação – hierarquicamente inferior ou superior aos tantos outros planos existentes – ainda que não houvesse chegado à conclusão acerca de tal mérito. Se fosse observada sua posição acima, por que não conseguia desfazer-se totalmente? Seu desejo remanescente (ainda que sutil) teria que insistir em confrontar suas determinações de pessoa. Caso estivesse abaixo, qual o motivo de tanta vinculação a ela por parte dele? Quem sabe pura falta de auto-estima, um vício de comportamento.

A conclusão, quanto ao cerne absoluto, fazia-se inevitável: ela era duas. Sempre havia sido, não? Talvez outras, revezando-se por trás de seus olhos, transformando, a cada demanda, suas portas para o externo, tornando a mesma imagem sujeita a um milhão de julgamentos. De que forma poderia ser simples firmar uma escolha, se cada uma de suas pequenas meninas corria para lados opostos? Múltiplos, obscuros, eufóricos e deprimentes, equiparando-se os movimentos – iguais e contrários – de forma a mantê-la inevitavelmente inerte.
Dias, meses, mais de um ano. Atrasos estruturados pela supressão de todos os seus sentidos, conseqüentes da proibição autoritária de tantos sentimentos: não podia evitar seu racionalismo. Ama-se com a mente, não é mesmo? Elenca-se, do modo mais organizado e plausível possível, ônus e bônus paralelamente e, por fim, utiliza-se da soma e da comparação. Intensidades são expulsas, hierarquias ignoradas. Ela não tinha o direito de desfazer-se de uma vida fresca, colecionadora de tópicos diversos, frente ao vazio da coluna da direita, tinha? Ao menos queria?
Sabia que jamais iria saber. Assumia que a certeza, para si, nunca havia sido uma opção. Enxergava claramente o bom e o ruim, formulava estratégias de resolução, mas era esperta o suficiente para entender que seus próprios desejos sempre afastaram qualquer estabilidade. Nasceu e irá morrer oscilante, perdida entre a razão e o inefável, e o pior: uma jogadora. Players only love you when they’re playing, some say. Era a melancólica verdade, reconheceu com certo pesar. Doses cavalares de adrenalina quase não bastavam mais. Precisava destruir a vida à procura de histórias, pois também não suportava a doçura que Caio F. contou. Ansiava pela democracia masoquista de dividir seus pesares com quem fosse capaz de ouvir – e um romance, ou se escreve, ou se vive, lembrou-se em adição.
Se a vida consistia em uma sucessão de momentos elencados, e já que era dotada de um vício por seus começos, definiu, como em uma epifania, que iria satisfazer-se apenas com eles. A grandeza de um homem é diretamente proporcional à paixão que ele sente. E no meio às suas confusões perdidas, batalhas mal-resolvidas, decisões insensatas, nutria uma certeza: dessa qualidade jamais se libertaria. Era isso, portanto. Cru – triste, mas real. Queria ser grande. Precisava, humildemente, desta nobreza.
E como não controlava suas paixões, ao menos se limitaria a incessantemente buscá-las. E compreendeu, por fim, o culpado pela traição de sua harmonia encapsulada: era o ego de ser maior, que não se contentava com a fala mansa de todo o amor do mundo. Demandando a ínfima paixão, mandava embora candidatos injustamente não qualificados para seus requisitos sobre-humanos e, por natureza, temporários.
Ela havia precisado matá-los a fim de sobreviver e, a partir de seu alumbramento, entendeu como natural conseqüência que estaria fadada a similares prazos de validade. Pequenas vidas sendo obrigadas a terminar sem motivos engolíveis ao ínfimo senso comum. Muito doentio, evidentemente. Insanidade (ou grandeza) construída em doses homeopáticas – e, típica racionalista, deixou o receio abarcá-la.

Mas a paixão é feita da loucura, retificou assiduamente. E sabia, como expressão de um lapso escondido da fé que raramente possuía, que até mesmo na mais profunda loucura existem brechas de razão.

"Tanto pasmo, depois. Sozinho no apartamento, domingo à noite. Todas as coisas quietas e limpas, o perfume adocicado das madressilvas roubadas e o bolo de chocolate intocado no refrigerador - até a televisão falar da explosão nuclear subterrânea. Então a suspeita bruta: não suportamos aquilo ou aqueles que poderiam nos tornar mais felizes e menos sós. Afirmou, depois acendeu o cigarro, reformulou, repetiu, acrescentou esta interrogação: não suportamos mesmo aquilo ou aqueles que poderiam nos tornar mais felizes e menos sós? Não, não suportamos essa doçura. (...) Um instante antes de bater outra, colocar uma velha Billie Holiday e sentar na máquina para escrever, ainda pensou: gosto tanto de você, baby. Só que os escritores são seres muito cruéis, estão sempre matando a vida à procura de histórias. Você me ama pelo que me mata. E se apunhalo é porque é para você, para você que escrevo - e não entende nada."