segunda-feira, 30 de março de 2009

confissões

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No início foi insuportável. Não sei se digo no início, porque já faz muito tempo, e em alguns momentos ainda sinto como se tivesse recém aberto os olhos após sonhos-pesadelos-negações. Confusa, bêbada de insônia. Depois tornou-se terrível, vício, obsessão, procurar a cada segundo o motivo pra viver o próximo. Mais tarde, achei ruim, dor de cólica no último dia, nunca mata, nunca passa.
Agora não defino mais. Sei sobre o que existe, não gosto e tampouco aprovo, não me afogo nem encolho. Assumo que o que está lá, longe, indevassável, são labirintos para meus braços curtos. Frustração, impotência, ando em círculos. Respiro uma, duas, dez, sempre muito devagar: C’est la vie!
Várias vezes quis te falar da diferença fundamental entre nós dois, várias vezes (in) completei sons, gemidos, sussurros mudos, nunca tive coragem. É, também não acredito nisso, tampouco me orgulho, mas enxerguei - escorreguei partes de mim, projeção, hipocrisia, modelando o que pudesse soar mais compatível entre água e óleo. Quieta, chata, tom-pastel: era isso o que você queria, era isso o que eu iria ser.
O nosso abismo sempre foi que eu precisava de paixão, ir ao fundo de todas as sensações, buscar verdades bruxas piratas fadas magia, sentir e sentir mais, sem limites ou controle. Você com um pouco de atenção vez em quando, um carinho sutil, prato-feito não decorado, ficava feliz o suficiente. Eu queria gritar enquanto te ouvia falar tão manso.
Ironia genial, entre o 36 nós íamos. Eu querendo 80, 90, milhões, você insistindo pelo 8, até 7, por que não zero? Sempre foi mais um desafio do que o puro-pleno amor. Guerra de egos, petulância que escorria. Dois Deuses lançando seus raios mortais, colando corpos com técnicas baratas, persuasões calculadas, estratégias reais no nosso faz-de-conta. Brincar de casinha, sorriso Doriana, objetivo eterno. E você foi minha falha. Invencível, feliz e pleno com mais um buffet livre de comida barata, enquanto eu só me contento com caviar e champanhe europeu.
Meu orgulho foi apedrejado, empalado, esquartejado. Dependência sutil, com requintes de carência, sonhos eróticos, histórias criadas e repassadas infinitas vezes pra saber – novamente – o jeito certo de agir, caso houvesse uma próxima.
Fato é que sempre fui boa demais pra você, mesmo que se forme uma aura arrogante ao redor de minha palidez, eu sempre fui, sim, boa demais. Também crente demais, pura demais, muito demais. E sempre vi no menino perdido e pedinte o homem formado e pronto pra tudo o que viesse ser. Ser, essa é a palavra. Ser o quê? Não importa, sempre algo. Nunca neutro, nunca nada, o que fosse necessário para sentir. Dor, gozo, fome, paixão. Era isso o que importava, o que foi. Foi, não é triste? Foi e nunca mais será, o fim do amor é nunca mais, não é mesmo? Mas não diga nunca, ainda vivem sonhos memórias pensamentos criações - energia própria, inabaláveis - sempre é, quando queremos que seja, não diga nunca, nunca mais.
Não consigo lembrar se te amo, se ainda te quero, se sinto saudades. Não consigo porque nessa inconstância constantemente me divido em milhões: cada uma formatada pelo meio em que está. Polipolaridade, quero ser a forte saudável, sou mais eu, adeus, adeus. Me pego boba nostálgica vivendo exatamente cada momento de fraqueza em que poderia ter nos salvado. Respostas nulas, sem persuasão. Ainda consigo me culpar.
A questão era acreditar, não era? Repetir incontáveis sins, Sim, podemos, somos, queremos, vamos. ‘Meu amor, um dia, nosso horizonte vai se anunciar, eu te amo, você me ama, um dia, um dia’. Quando? Quando o amor acabar, quem sabe.
Doente, contaminada, tenho medo de passar meu vírus mortal a qualquer tentativa de toque. Afasto, tenho asco, pavor. Não quero multiplicar essa sensação em outros, não quero ter que ser você, enquanto já tenho que ser eu.
Encostada na parede, apoiada na janela, cadeira, pernas cruzadas, e espero o momento em que vou ouvir - querida, faz um pão de queijo, vem deitar comigo, vamos ao cinema. Devo estar surda, devo estar louca. O único som possível é o do vento nas árvores, cachorros descontrolados, moscas batendo milhares de vezes suas asas pelo ar.
Esperei até o último instante, que sucessivamente se transforma em penúltimo, e mais outro, e outro, e vários. História-sem-fim, me apunhalo a cada final tentativa, ressuscito com outra nova, ato-falho, mente burra, coração fraquejado. Tremo muito.
É para você que escrevo, gastando meus momentos vazios. É para você que nunca vai ler nada disso, que se ler não vai entender, que se entender vai odiar. Adoto as mais fatais expectativas porque o conheço: Snow king, empedrado, olhar voltado todo para dentro. Mas é para mim que escrevo, gastando minha vida vazia. Para que eu leia incontáveis vezes, entendendo tudo perfeitamente, odiando não sentir nenhum ódio por você. Assumo a melancolia a cada espelho, reflexos d'água: Snow queen derretida, pedras que se decompõem, olhar voltado todo para nós.
Não vai dar tempo, vai? Aquele dia não existe? Ilusão, mero passatempo, clichê transbordando descaso. Já está ficando tão tarde. Quando sentei aqui estava tomada pelo escuro em meu corpo, confundindo-se com o céu sem estrelas. Agora o dia já ameaça seus raios coloridos.
Mais uma noite perdida por você. Mais uma noite de ruídos periódicos como torneira que pinga, à espera do que não se vai ouvir - carro que buzina, lotação que pára no portão - é você, pode ser você, por que você não veio? Madrugada termina, perco a noção do tempo. As horas já não mais existem, tudo se define por quando, Deus, será que você volta. Nunca mais? Tudo bem, não faz mal, o eterno é belo e cruel, pesado, como café e cigarros antes de dormir.
Estou cansada, cansada de tudo o que tive e não tenho mais, cansada de tanto amor que me proíbem de sentir, cansada de querer gritar e violentamente me calarem a boca.
Quero você, você sabe. Pleonasmos infinitos, quero querer você, porque preciso descansar. Quero querer você porque nosso amor soava como a esperança perdida de todos os séculos de medo e horror. Quero querer você, querido, porque preciso de algo vivo, rico, puro eterno. E o mundo é muito sujo - deve saber - perdido, podre, não há saída, meu bem.
Voamos para Marte, Saturno, Plutão. Outras galáxias, universos, buracos-negros infinitos. Fugimos de toda essa peste, doença suicida, massacre, chacina. Quero querer você, amor, porque preciso de vida. E o que sobra quando você não vem é overdose, roleta-russa, guilhotina, 38.
Outra lotação, olho afobada, passa reto pela fresta da porta aberta.
Você não veio, e é sempre morte.


"Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra? Uma desilusão. Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido."

sábado, 7 de março de 2009

A Flor

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Semana passada vi a flor mais bonita que existe no mundo. Não só era a mais bonita, como tinha um perfume que me deixou bêbada, cores absurdas, cegantes, magnetizante da raiz à última pétala.
Eu sei que é engraçado encher de adjetivos pomposos algo que mal cheguei a sentir o gosto de corpo e alma e, distante, olhei por poucos minutos. Também não tenho como provar para o resto do mundo que ela era realmente tudo isso que aqui digo e, mesmo que reencarnasse em Michelangelo, Rembrandt, Van Gogh não seria fiel à realidade.
Fato é que quero me dar uns tapas até agora porque não sei qual o nome da rua em que lá ela se exibia, trazendo todo o sol e qualquer outro raio luminoso escondido só para ela, como holofote atrás de estrela. Não lembro do número da casa onde estava segura e fixa em um vaso que sequer vi, não sei nem mesmo se foi aqui em Porto Alegre.
De qualquer forma, ela brilha em minha cabeça de uma forma que me faz querer gritar. Me hipnotizou, a flor. Arrancou e mandou para longe todas as coisas que impedissem meu campo de visão, escancarou, embora imóvel, que eu não poderia olhar para nada a não ser ela.
Com meus olhos ardendo, não me senti ao menos digna de chegar mais perto. Tocá-la então, ousado demais. Olhava de cantinho, como quem sente medo de abrir os olhos completamente depois de ter passado séculos no escuro.
A flor resumia com perfeita exatidão tudo o que existe de completo. Ela era tudo, tudo era ela. Resumia o mundo em um relance de milhões de cores, sensações. Carregava dor, paixão, plenitude. Tinha a cara cansada, de quem espelha experiência, mas a aura jovem, nova, enérgica. E não sei ao menos seu nome. Tampouco me atrevi a inventar apelidos ordinários que pudessem manchar sua perfeição quase inanimada. Era só A Flor. Em maiúsculo.
Estranho é que faz sete dias seguidos e ininterruptos que sonho com ela. Vejo outras, centenas, milhares, imensidão de irmãs - primas, amigas íntimas - mal consigo ver onde terminam e fico tomada de paixão. Me vejo intrusa entre todas elas, imóvel, lágrimas nos olhos, emoção borbulhante. Quero ser parte de tudo aquilo e não consigo. De qualquer forma, torço para que o sonho dure para sempre.
Acordo sempre com a mesma sensação de paz e desespero. Não abro os olhos devagar, e sim levanto meu peito como bala de canhão, com seus freios inundados de óleo que me impedem de ir devagar. Encantada e com medo.
Tenho pena de mim, sozinha e, noite após noite sem conseguir me encaixar - mesmo que tente, esforce até sentir dor - frente àquela beleza cegante. Pena da Flor, tão exuberante como solitária, não merecedora de nenhum reles mortal.
Passo horas tentando teorizar sobre a confusão que a maldita-sagrada me causa, encontrando uma explicação inventada, que possivelmente é equivocada: Todos nascemos flores, não tão bonitas, nem tão cheias de alma e cor, apenas flores, em minúsculo. Alguns de nós, porém, começam a sentir a tinta pingando por todos os cantos, perfumes que jorram e fazem cambalear de prazer, raios infinitos destinados a nos encontrar. Viram Flor. Por que eles? Não sei. Talvez tenham encontrado algo que ainda não encontramos.
Pensando nela, penso também no maior Amor que consigo imaginar. Outro que, imutavelmente, aparece em maiúsculo. Sempre os aproximo do mesmo sonho, talvez o único lugar onde sejam possíveis.
Fato é que Amor e Flor nasceram para serem imortais, para seduzirem e aterrorizarem todos os que se atrevam a dar as caras perto de suas ruas, pararem na porta de suas casas, se sentirem não dignos de seu esplendor. Mais certeiro ainda, é que seus endereços são sempre sagrados, escondidos, e que eternamente teremos que nos atirar frente à becos inóspitos, quadras escuras, esquinas perdidas com a fé desesperada de os encontrarmos por acaso. Para ficarmos inebriados de idealismo, fazermos parte daquilo que nossa vida nômade e cética normalmente tenta nos convencer de que não existe.
Mas vamos esperar por mais. Muito mais. Mais do que qualquer dia achamos que fosse possível, mais do que nossa falta de Algo possa tentar nos influenciar.
A Flor me trouxe esperança, derreteu meu coração já gelado frente a desgraças, erros e quedas. Sei que ela é real, tenho certeza de que provavelmente não a verei de novo, mas ainda tenho sua imagem brilhando cada vez com mais força, e ainda acordo com o mesmo peito que pula rápido e descontrolado. Mas vou tentar perder o medo. A Flor é perfeita sim, e eu sou carne, osso, víceras. De qualquer forma, ela apareceu para mim, e imagino existirem outras (e outros), várias, em algum lugar que nem imagino. E nem quero, só sigo acreditando. Na minha Flor, no meu Amor. O que me faça abrir os olhos tranqüila, depois de um sonho em que faço parte do intocável e pleno. Que arda, mas não machuque. Que pulse forte, sem arrebentar. Que seja o mais bonito do mundo, com perfumes que me deixem bêbada e cores que me ceguem. Que me magnetize. Que eu prove de corpo e alma, por incontáveis minutos.
E que exista, só peço que exista.

'Que imensa miséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida. Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muito mais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "o amor, caro colega, esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.'

quarta-feira, 4 de março de 2009

epifania

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Eu queria te dizer que acho que você nem gosta mais de mim. E mais ainda que mesmo assim eu gosto de você. De uma maneira que eu nunca entendi e suponho que nunca vou entender. De um amor - amor? Tão homicida que despedaça tudo o que existe dentro e fora de mim. Não pós, mas pré-fim, ou melhor, durante.
Queria te dizer que você tem o motivo errado, eu me confundo e não sei por que. Que algum poder magnético te faz de ferro e me deixa imã, bloqueada por infinitas barras de vidro cintilante. Consciente e perdida. E cada vez com mais medo.
Medo que contorce todos os meus reflexos, enrijece meus músculos, borbulha meu sangue. Medo de apodrecer aqui nessa cidade perdida, de me perder no meu corpo partido.
A cada baque do relógio imagino se o tempo fará seu trabalho sozinho. Amanhã faz sol, e depois chove, e abre um arco-íris efêmero e tudo está bem. Outro baque, novo dia ameaça. Não consigo acreditar em ideal nenhum. Já faz mais de um mês. Um mês de deci-mili segundos procurando traduzir o que nunca serei capaz, de decepções ridículas pelo que poderia ter sido e não foi, de goles de realidade me encurralando em alguma antes curva velha, agora beco imundo e sem saída.
Não sei encarar. Cambaleio em doses homeopáticas de anestesias e tranqüilizantes para que fique tonta, cega. Não quero ouvir, e viro surda também. Para todas as verdades tão novas que já foram repetidas. O dualismo mascarado que tenta me arrastar para cima.
Você me deixou aqui. Abandonada, desesperada e perdida. Sozinha com meus demônios trancados a sete chaves. E como se me torturassem, cada uma gira silenciosamente, sem avisar quando estará mais perto. Nada tenho senão esperar mil monstros imunes à minha surdez, visíveis aos meus olhos, obrigações fatais.
Perdi as armas, você me mata e eu me deixo morrer. Insisto no fim mais doloroso que consigo inventar, pra que dure muito, nunca acabe.
Então os papéis derretem, e o culpado irrefutável se confunde. Eu me deixo morrer.
Eu, sempre eu.
Olho no espelho e não reconheço. Quero quebrar em todos os pedaços o estranho você que aparece em meu lugar. Não consigo aceitar minha auto-sabotagem, masoquismo irreparável, tudo que nunca quis e, enfim, concluí. Sem ingenuidades residuais. Com um surto de personalidades perdidas, me apunhalo sem nem perceber, salva apenas pelo estranho à minha frente, que gira sadicamente o metal na minha barriga. Bato no espelho, sangue nas mãos e no rosto. O que, por deus, aconteceu?
O medo de minha loucura me faz querer ir embora, mas a sujeira em minhas mãos não me deixa correr. Você não tem mais nada a ver com isso.
Meu corpo se duplica em estratégias que não lembro de ter criado. Triplica, multiplica, inventa vozes, táticas em um jogo único de plenos fracassados. Eu contra mim, depois de depressões incontáveis me engolindo vorazes, me convencendo de que era eu contra você.
Meia noite em ponto. Um raio brilhoso pinta o céu todo negro de um branco estranho. Um click em minha mente, à verdade que se anuncia.
Não consigo me recordar de nenhuma dose de amital-sódico me deixando em estados semi-hipnóticos, mágicos, paralelos, para manipular minha memória inventando a que não existe. Nunca existiu. Você não tem mais nada a ver com isso.
Guerra declarada, respiro fundo, abro os olhos, destapo os ouvidos e morro frente aos mil demônios impiedosos, voando livres, fazendo dançar suas palavras cruéis, lentas, calmas e determinadas, que entram em meu ouvido estraçalhando tudo o que encontram. Me despertam. Me dão incontáveis tapas na cara, deformam meu rosto que ironicamente cada vez mais volta a parecer com ele mesmo. Esfregam silêncios guardados tão bem quanto eles, me libertam. Me arrastam pra cima do poço sem fim, e mesmo feios, cruéis e tão reais, me deixam ciente de que um dia eu irei reencarnar. Para uma nova vida, sem suicídios, homicídios, homeopatias, tonturas, cegueiras e surdez. Sem estranhos tomando o lugar de meu reflexo. Me desejam boa sorte e vão embora para sempre.
Esse é só o meu começo. And you are free to go. Goodbye.


'Nesse sentido, ciclo seco é forte, porque nada vindo de fora o abala, e imutável, porque de dentro nada vem que o modifique. E sendo assim, com alívio vou quase concluindo, pode se deduzir que. Não, não se pode deduzir nada. Só que passa, por ser ciclo, e por ser da natureza dos ciclos passar. Até lá, recomenda-se fazer modestamente o que se tem a fazer com o máximo de disciplina e ordem, sem querer novidades. Chatíssimo, bem sei. Mas ciclo seco é assim mesmo. Todo mundo tem os seus, é preciso paciência. E contemplá-lo distante como se estivesse fora dele, e fazer de conta que não está ali para que, despeitado, vá-se logo embora e nos deixe em paz? Eu, francamente, não sei'