domingo, 15 de janeiro de 2012

a grandeza de um homem é diretamente proporcional à paixão que ele sente

-

Sentia-se inerte. O mundo dando trotes rápidos como quem quer chegar, mesmo brusco, a um destino qualquer. Ainda assim, situava-se alheia a tudo aquilo - ao som da buzina no portão, ao compromisso desimportante, às conversas banais. Prendia-se em algo muito mais complexo, embora também tão escuro, e percebia um novo, e outro, e mais um nó, imbricados, interpenetrando-se mais fortes a cada segundo corrente - crente da impossibilidade de reabri-los.
De que forma era possível que tantas verdades escorressem pelas paredes descascadas, progressivamente impregnadas de mofo, a sujeira antes escondida ameaçando a aparecer. Era como se tivesse quebrado o olho mágico através do qual era capaz de enxergar, como se, afinal, nada houvesse sido real.
Então foi só mais um engano? Por dentre o universo de promessas bem feitas, verdades coloridas, olhares galácticos e todo o resto, irrelevante e essencial, não era ele? Ou então, não seria mais ela: e pensou em bipolaridade, depressão, esquizofrenia e borderline, tentando buscar, no mais escondido de dentro de si, o porquê de enxergar no espelho de hoje outro ser que não o de antes.
A própria rosa em todo o seu simulacro de presente, tão viva dias atrás, mas intrinsecamente dotada de duas faces: como havia se camuflado tão perfeitamente? A essência e aparência, sinônimos exatos, concomitantemente contraditórios. Olhava para ela, para ele, para o indeterminado das coisas que já deveriam deter um significado fixo, imutável – e detiveram– até dissipar-se entre as milhares de partículas invisíveis que as rodeavam.
De que maneira manter-se-ia estática quando o tripé que nele a segurava dividiu-se em três estacas solitárias espalhadas pelo chão? Ou, então, como passaria a andar, na medida em que as mesmas estacas reorganizavam-se em grade infinita frente a todas as passagens importantes? Reduzir-se ao imenso vazio de si, à incompreensão do estar, em meio a todos, solitário por não saber traduzir o encontro de seu antigo e novo ser, ou verdadeiro e falso, ou doente e são – enquanto o resto circundante parece ser infectado pelo vírus que nela flui: quando você chora os outros também sofrem, menina.
Doía sentir a dor dos demais causada por sua própria dor, já que não entendia de onde a mesma havia surgido: por que despertara após séculos de sono profundo, respiração ofegante, sonhos lúcidos? Queria submeter-se aos mais diversos xamãs e curandeiros, talvez atores da inserção de um efeito simbólico voltado a fazê-la dormir, feito a dor recém acordada e mal educada – que instalou-se escondida, mas súbita, sem garantir explicações ou cumprimentos, nem um bom dia ou como estás – sempre iniludível.
Teve medo de a montanha russa ser essencial, chorou baixinho por pensar que, talvez, as fases cíclicas fossem alguma espécie de karma fatal, discrepância do destino. Perderia, então, toda a espontaneidade? Sabendo que a gangorra estava constantemente em movimento e, impotente, deveria esperar que voltasse a descer, logo, de uma vez – ou, então, contentar-se com um improvável equilíbrio de balanças? Não se satisfaria com qualquer das opções.
Almejava desesperadamente deter o que tivera ontem, e antes de ontem, e antes ainda, mesmo que não encontrasse explicação ou significado – ainda que atirada a uma ilusória imagem fraca e distorcida da resposta –, não importava: ansiava por seu mix de luzes claras-cegantes, seu brilho transcendental, feito dança de vagalume, subindo de volta ao posto de onde nunca devia ter se permitido descer.
Mas a dor, ah, concorrente perigosa: espera cínica e paciente o pesar dos olhos do parceiro, para empurrar seus pés forte no chão e alçar-se para cima, empurrando-o inevitavelmente ao solo. É a gangorra da vida, supôs, tanto convencida quanto inconsolável.
Sempre acreditou no eterno como imediato, sutilmente enganando-se, assim, no advento dos fonemas do infinito. Se sabia tanto acerca das facetas escancaradas da verdade, como voltar atrás? Uma vez dentro, o caminho frente às suas lentes coloridas – distorcidas, talvez (não dispensava nenhuma possibilidade) – se anunciava como inevitável, não passível de qualquer desvio ou mesmo retorno, ainda que sua clareza limitasse-se à pura forma. O conteúdo, como era de se esperar, aguardava essencialmente obscuro.
E lembrou-se daquele dia no qual se sentiu exatamente da mesma forma em que hoje, mas recuando a passos largos, resistindo imensamente a qualquer vontade exterior capaz de tirá-la de seu lugar comum ao lado dele – aquele onde todas (todas?) desejariam encontrar-se – fingiu sustar sua dívida com a lealdade da consciência. Pensou nas incontáveis possibilidades que havia incinerado, nos defeitos pré-julgados que atribuía aos demais – pois lançá-lo de plataformas de vôo exigiu afogar qualquer sombra igualmente humana, por abarcar tal pressuposto e só – e pensou então que nem valia mais a pena voltar atrás. Obrigava-se, assim, a reconhecer que o plano da verdade não era diverso, que a perfeição consistia em caráter objetivo e imutável – jamais passível de contraponto.
A culpa inerente à sua limitação visual a corroia de parte a parte, completando cada centímetro capaz de pensar-se como dotado do direito de, simplesmente, não ser mais capaz de enxergar. Estruturava-se, dessa forma, um abrir de olhos voltados estritamente à esperança do futuro, cego e cambaleante tanto a memórias passadas quanto à configuração do presente.
Não podia aceitar que o amor ideal não consistia em ideal para si, como se ela fosse dotada exclusivamente do poder da insatisfação – hierarquicamente inferior ou superior aos tantos outros planos existentes – ainda que não houvesse chegado à conclusão acerca de tal mérito. Se fosse observada sua posição acima, por que não conseguia desfazer-se totalmente? Seu desejo remanescente (ainda que sutil) teria que insistir em confrontar suas determinações de pessoa. Caso estivesse abaixo, qual o motivo de tanta vinculação a ela por parte dele? Quem sabe pura falta de auto-estima, um vício de comportamento.

A conclusão, quanto ao cerne absoluto, fazia-se inevitável: ela era duas. Sempre havia sido, não? Talvez outras, revezando-se por trás de seus olhos, transformando, a cada demanda, suas portas para o externo, tornando a mesma imagem sujeita a um milhão de julgamentos. De que forma poderia ser simples firmar uma escolha, se cada uma de suas pequenas meninas corria para lados opostos? Múltiplos, obscuros, eufóricos e deprimentes, equiparando-se os movimentos – iguais e contrários – de forma a mantê-la inevitavelmente inerte.
Dias, meses, mais de um ano. Atrasos estruturados pela supressão de todos os seus sentidos, conseqüentes da proibição autoritária de tantos sentimentos: não podia evitar seu racionalismo. Ama-se com a mente, não é mesmo? Elenca-se, do modo mais organizado e plausível possível, ônus e bônus paralelamente e, por fim, utiliza-se da soma e da comparação. Intensidades são expulsas, hierarquias ignoradas. Ela não tinha o direito de desfazer-se de uma vida fresca, colecionadora de tópicos diversos, frente ao vazio da coluna da direita, tinha? Ao menos queria?
Sabia que jamais iria saber. Assumia que a certeza, para si, nunca havia sido uma opção. Enxergava claramente o bom e o ruim, formulava estratégias de resolução, mas era esperta o suficiente para entender que seus próprios desejos sempre afastaram qualquer estabilidade. Nasceu e irá morrer oscilante, perdida entre a razão e o inefável, e o pior: uma jogadora. Players only love you when they’re playing, some say. Era a melancólica verdade, reconheceu com certo pesar. Doses cavalares de adrenalina quase não bastavam mais. Precisava destruir a vida à procura de histórias, pois também não suportava a doçura que Caio F. contou. Ansiava pela democracia masoquista de dividir seus pesares com quem fosse capaz de ouvir – e um romance, ou se escreve, ou se vive, lembrou-se em adição.
Se a vida consistia em uma sucessão de momentos elencados, e já que era dotada de um vício por seus começos, definiu, como em uma epifania, que iria satisfazer-se apenas com eles. A grandeza de um homem é diretamente proporcional à paixão que ele sente. E no meio às suas confusões perdidas, batalhas mal-resolvidas, decisões insensatas, nutria uma certeza: dessa qualidade jamais se libertaria. Era isso, portanto. Cru – triste, mas real. Queria ser grande. Precisava, humildemente, desta nobreza.
E como não controlava suas paixões, ao menos se limitaria a incessantemente buscá-las. E compreendeu, por fim, o culpado pela traição de sua harmonia encapsulada: era o ego de ser maior, que não se contentava com a fala mansa de todo o amor do mundo. Demandando a ínfima paixão, mandava embora candidatos injustamente não qualificados para seus requisitos sobre-humanos e, por natureza, temporários.
Ela havia precisado matá-los a fim de sobreviver e, a partir de seu alumbramento, entendeu como natural conseqüência que estaria fadada a similares prazos de validade. Pequenas vidas sendo obrigadas a terminar sem motivos engolíveis ao ínfimo senso comum. Muito doentio, evidentemente. Insanidade (ou grandeza) construída em doses homeopáticas – e, típica racionalista, deixou o receio abarcá-la.

Mas a paixão é feita da loucura, retificou assiduamente. E sabia, como expressão de um lapso escondido da fé que raramente possuía, que até mesmo na mais profunda loucura existem brechas de razão.

"Tanto pasmo, depois. Sozinho no apartamento, domingo à noite. Todas as coisas quietas e limpas, o perfume adocicado das madressilvas roubadas e o bolo de chocolate intocado no refrigerador - até a televisão falar da explosão nuclear subterrânea. Então a suspeita bruta: não suportamos aquilo ou aqueles que poderiam nos tornar mais felizes e menos sós. Afirmou, depois acendeu o cigarro, reformulou, repetiu, acrescentou esta interrogação: não suportamos mesmo aquilo ou aqueles que poderiam nos tornar mais felizes e menos sós? Não, não suportamos essa doçura. (...) Um instante antes de bater outra, colocar uma velha Billie Holiday e sentar na máquina para escrever, ainda pensou: gosto tanto de você, baby. Só que os escritores são seres muito cruéis, estão sempre matando a vida à procura de histórias. Você me ama pelo que me mata. E se apunhalo é porque é para você, para você que escrevo - e não entende nada."


quinta-feira, 21 de maio de 2009

faz de conta que faz de conta.

-

Já fazia algum tempo, não sabia exatamente quanto, se remexia insone. Havia tentado abraçar o travesseiro forte no peito, as mãos entre as coxas, barriga mergulhando no edredom, olhar fixo no teto. Nem mesmo ao pré-sono chegou, tão alerta, à espera. Pensou no feriado de segunda-feira que descontrolou seu sono, nas aulas a mais que a deixaram tão cansada, na semana banal e desgastante. Nada mudou. Alerta, à espera.
Eles já não se falavam há uma semana, logo depois daquele encontro estranho, uma intimidade um tanto teórica, profissional, tão preocupados. Um querendo provar ao outro o quanto sabia fazer o que estava fazendo. Ou então, quem sabe, necessidade preocupante, inexorável e recíproca, de fazer com que o outro se sentisse bem. Ela precisava deixar de ser tão pessimista. Era sexta, era o dia, era cedo. Cinco multiplicando vinte e quatro, quanto tempo já faz?
Tortura. Eu falo primeiro ou você? Devo ser muito fraca (o) mesmo, ele não liga, ela não fala, ele não sente, ela não sente. Cinco dias de estratégia, até que de repente, reviravolta. Começava o final de semana. Resplandecido entre a coragem de um ou outro, vinha o convite, transformando todo aquele aperto - ódio guardado - em uma explosão sincrônica. Na última vez pareciam um casal brincando de casinha atirados naquele sofá. O olhar dele medindo cada poro, cada ponto, penetrando tão fundo e cada vez mais no mais escondido dela até rir sozinho e dizer “Eu te acho cada vez mais bonita”. E ela imaginando que ele já soubesse, que ele já supusesse, não achava necessário cortejar de volta – estilingue, raio de sol no espelho – era tão óbvio.
Viviam assim: jogo não declarado, embora nada sutil, de segunda a sexta-feira pela tardinha. Era o limite. Logo depois, libertinagem, liberdade. Uma torneira pingando devagar, até encher o saco e derramar toda a sua água de uma vez só.
Não falavam de sentimentos. Ou melhor, falavam, mas não em um universo claro, seguro, aura cor-de-rosa, naturalidades. Ele se escondia por trás de sua arrogância sarcástica, ela em suas ironias constantes, como se fosse proibido ou perigoso falar a verdade. Como se a vulnerabilidade fosse dos maiores fardos, vícios, meio morte.
Estavam assim há alguns meses, pisando em ovos durante a semana, quebrando-os descontroladamente depois, comprando novos e repetindo o ciclo rotineiro tão imóvel. Seria tedioso e enfadonho se não ficasse clara a (in) clareza em que eles conviviam, tentando se doar sem parecerem entregues, bolando misteriosos discursos silenciosos, inventando mentiras sinceras, nutrindo muito bem as pequenas-esperanças para depois tomá-las como vitamina matinal. Quando um ou outro se cansava de toda a burocracia semanal, inevitavelmente era sexta à tardinha ou sábado, como se o corpo tivesse sido previamente programado para entrar em pane no exato momento em que receberia socorro.
Ela mantinha um medo mortal de parecer uma daquelas menininhas-bobinhas, o quarto ainda rosa, ainda breve. As idéias um tanto rebeldes – mas é da idade, diziam. O comportamento transitando entre o I Don’t Give a Damm, logo depois traduzia Já Sou Mulher Feita Gostosa, ta valendo, não?
Ele mantinha um medo secreto de não corresponder às expectativas dela. Era um tanto mais velho, vendia experiência, exalava uma segurança do tipo Sou Cachorro Pego Todas Mamãe Passou Mel Em Mim, quase sobre-humano, sem o conforto de poder falhar.
Por algum motivo que não procuraram desvendar ou aprofundar, enquanto juntos equiparavam-se. Ela não tinha que ser menina nem mulher, ele não tinha que ser semideus dotado de conhecimento. Ela era, ele era, eles eram. Sem fazerem qualquer esforço para ser.
O telefone, então, tocou. Por mais que não estivesse esperando ligação alguma, sabia que era ele, e por mais desprovido de estresses externos que o momento fosse, por mais que ela não estivesse sonhando profundamente ou suando gelado (afinal se revirava há algum tempo e já nem sabia mais quanto), mesmo assim levantou o peito pesado feito bala de canhão e atendeu, deixando de lado qualquer estratégia acerca de quantas vezes deveria esperar que soasse aquele RingRing antes de fazer algum movimento.
- Oi Madame!
O mesmo tom de sempre, pensou. É sexta, teve vontade de dizer, fingi que não te esperava, mas não me permiti fazer qualquer outra coisa, afinal, é sexta – as palavras quase escaparam por entre os lábios – senti sua falta, queria dizer. Mas só conseguiu responder:
- E aí.
- Tu ta em casa?
- Sim.
- Abre pra mim, to aqui na frente.
E desligaram.
Ele nunca tinha tido coragem, como ela diria, ou audácia, como ele diria, de ir até a casa dela. Sempre foram bares, cinemas, filmes que ela fingia gostar, músicas que ele fingia conhecer, casas de amigos, sofás e camas alheias. E ela, pensando em mil coisas ao mesmo tempo, não conseguiu fazer uma daquelas análises minuciosas sobre o porquê ele foi até lá, sobre o porquê ele não ligou antes, sobre o porquê não houve jogo algum dessa vez. Roupa, rímel, pente, pasta de dentes... Perfume! Ela não podia esquecer-se de passar o perfume. Aquele que ele dizia, enrolado, ser tão poço de embriaguez, como caminho para a sobriedade.
Desceu, ainda um pouco ofegante, meio embaraçada e insegura – ele só parecia domado nos finais das noites, e por um segundo apenas, logo antes de ir embora. Desceu assim, envergonhada como criança que pega na mão pela primeira vez. Não deu tempo de passar rímel algum, então seus olhos pequenos-naturais entravam em um certo descompasso com o resto do rosto um pouco mais largo. Fingiu cara de sono, desculpa boba por não estar impecável como sempre. Ele acreditou.
- Eu tava dormindo.
Apertou os olhos ainda mais, fingiu se espreguiçar.
- Tu fica linda depois de acordar, só não mais linda do que eu.
O sarcasmo egocêntrico de sempre.
Ela começou a odiar um pouco aquele bleg-bleg tão igual, ele começou a ficar incomodado com a aparente indiferença momentânea, meio desconfortável, um tanto sem ritmo, as máscaras ainda muito coladas no rosto de um e do outro, tudo, tudo errado.
Até que.
Aquela lua, meu deus, aquela lua exibindo-se e de repente quase salpicando seus pedaços de ouro-alaranjado, como chuva mágica, sobre eles. O silêncio. Talvez houvesse alguma moto barulhenta lançando suas buzinas, crianças chorando esperneadas, programas de tevê inúteis no vizinho ao lado – que insistia em elevar o volume ao máximo. Talvez. Para eles não havia nada além da chuva invisível da lua. A Terra, quase que automaticamente, se alinhava com o sol, com Marte, com Júpiter, que seja. O momento era exato: como em toda a sexta-feira ou sábado.
- Eu senti saudades tuas. Não sei por que vim até aqui. Parece audácia, não parece? Sempre achei que fosse audácia vir aqui na tua casa, tu sempre riu e me chamou de covarde ou idiota, mas hoje algo fez com que eu entrasse no carro e sem nem perceber, nem pensar, ligar ou planejar, virasse a chave e me arrastasse pelas ruas até aqui. Nem sei como cheguei, não lembrava o caminho. Acho que acabei de voltar a mim, na verdade. Devem ter me hipnotizado, manipulado, abduzido, acabei de voltar a mim. E estava sentindo saudades.
Qualquer solda fixa se quebrava, o mais forte metal derretia, começavam a expor o maior motivo de medo, embora nem lembrassem, nesse momento, o quanto era desesperador ficarem com o rosto nu.
- Me dá um beijo.
Ainda antes de se aproximar, ele esticou seu braço devagar para afastar os cabelos mechados, muito lisos, que cobriam os olhos pequenos dela. Braços fortes de homem feito, mas que sabiam ser delicados caso o mundo fizesse questão. Ela não se moveu, ainda encostada no carro e fixando o olhar não mais escondido, no olhar desprotegido dele. Então ele chegou mais perto, a segurou forte, leve, os olhos se fecharam naturalmente, mas os olhares mantinham-se inevitavelmente entrelaçados. Como se tivessem colado seus cílios abertos e invadissem toda a escuridão perdida do outro. Enxergavam tudo, de qualquer forma.
Um pouco montanha-russa, um pouco carrossel, estavam sozinhos no mundo. Não sozinhos, porque tinham um ao outro, mas não tinham, porque o filme acaba, o chá esfria, a cortina fecha. Mas tinham aquilo, o mundo girando tão doce quanto intenso, Paris. They knew they would always have Paris. Ficaram mais um tanto daquele jeito, pálpebras cerradas, quase mortos, mas mente tão viva, movimentos subindo do mais profundo prestes a jorrar qualquer quê por todos os orifícios. Pe-ris-tal-tis-mo, algo assim, mas mais forte. Conservaram o silêncio por muito tempo. Muito mesmo, porque quando perceberam, a lua já ameaçava esconder-se contornando os prédios altos do céu azul-petróleo. Pega-pega com as estrelas que fugiam das nuvens mais próximas.
Silêncio completo, saciado. Quase instigante, já que sabiam que nenhuma palavra trivial ou interessante podia explicar aquilo tudo na mesma rigidez arrastada, tão perfeita.
Então ela começou a rir sozinha, tão sincera, pensando em como queria tanto a semana toda, mesmo que não soubessem direito como lidar com, mesmo que tudo ficasse tão distante. Pensou que ele era experiente, dono de si, confiante, e que logo após aquele único segundo em que ela se sentia dele – e o sentia dela, as costas de um daria para as costas do outro, e ele pensaria o resto da semana em quaisquer outras mulheres, quaisquer outras coisas, porque era assim que ele era. Meio sem sentimentos, meio espertinho e tão frio, enquanto ela passaria de novo por aquela tortura estranhamente deliciosa, feito pimenta doce na língua e ardendo pela garganta.
Então ele quase que instantaneamente passou a rir com ela, tão certo de que tinha passado por todo aquele esgoto quase sem-fim para como sempre encontrar a saída, ai como era bom estar ali, mas que ela era só mais uma menina tentando ser mulher, embora muito esperta, meio imatura para todo aquele turbilhão que ele achava que sentia, e que ela passaria o resto da semana saindo com as amigas ou declamando ironias tão indecifráveis, enquanto ele pensaria nela.
Ele conteve o riso, estava ficando tarde. O tempo voava, lançando seu fardo sadicamente sobre os dois. A chuva invisível cessou.
- Tenho que ir, amanhã tem aula.
Ela não entendeu, era sexta-feira.
- Tu tem aula sábado?
Perguntou, já criando teorias complexas sobre ele estar mentindo, sobre ele estar odiando tudo aquilo e querendo ir logo embora para qualquer outro lugar.
- Amanhã é sexta. Te perdeu no tempo? Segunda foi feriado. Tu também tem que dormir cedo.
Ela ficou imóvel. Não porque queria, mas porque não conseguia se mexer. É claro! A mudança de horários, a rotina que foi quebrada. Era quinta-feira, era sim, e ele estava ali. Audacioso, corajoso, hipnotizado, manipulado ou abduzido, ele estava ali. Não conseguiu conter o sorriso grosso que se instaurava de orelha a orelha, quase que tomando conta de todo o seu rosto largo, seus olhos pequenos, seu cabelo liso-mechado. Quase sem pensar, sem nem conseguir falar direito – porque a boca não fechava – ela forçou o máximo que conseguiu.
- Quero te ver na próxima segunda.
E riu. E ele também riu, e deu um beijo curto, desejou boa noite e se virou – um pouco dela, um pouco certo – foi embora ainda falando algumas palavras que ela não conseguiu entender, alguma coisa sobre como a lua, ou o dia, ou a audácia, ou ela, ou.
Dormiram bem, sem sonhos profundos ou suores gelados, dormiram rapidamente, sem terem que procurar novas posições ou fixarem o olhar de agonia no teto.
Foram ao cinema na sexta, ela odiou o filme. Barzinho no sábado, ele não conhecia música alguma. Casa de uns amigos no domingo, deitando pelos sofás e camas alheias.
E na segunda-feira ela desceu (sem rímel), para abrir o portão.
Tinha acabado de acordar.


'Que coisas são essas que me dizes sem dizer, escondidas atrás do que realmente quer dizer? Tenho me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias. Mas confuso, perdido, sozinho, minha única certeza é que de cada vez aumenta ainda mais minha vontade de ti. Torna-se desesperada, urgente. Como pude cair assim nesse fundo poço? Quando foi que me desequilibrei? Não quero me afogar: Quero beber tua água. Não te negues, minha sede é clara.'

sexta-feira, 8 de maio de 2009

the beat

Falta do teu nariz gelado mergulhando em meu ombro, atrás do cheiro do meu banho de perfume caro. Falta dos teus braços fortes afundando meus braços fracos na cama molhada do nosso suor - cada vez mais fundo. Deliro, tanto frio. Grito até ensurdecer o mundo, fim da dor. Me possuindo: domínio barato entre goles largos de champanhe importado quase neutro entre a saliva nossa misturada.
O gosto do teu corpo e do meu já não se distingue mais. Onde eu termino e você começa, mesmo? Quero parar o tempo no meu prazer perdido-ganhado-perdido, congelo teus olhos. Mal te conheço. Nunca perguntei se gosta de Lynch, se a esquerda está morta mesmo -dizem por aí que sim - não sei nem teu nome do meio. Pode mentir, querido, acredito em tudo. Fadas, heróis intocáveis, magia negra, fico cega e nem me importo.
Mal te conheço e alguém explica então esse aperto no peito? Vai embora, tudo de novo, agoniada, desesperada, crente, faço mil promessas. E digo que não, não, jamais caio nessas ciladas, sou imune a toda essa porra, jogo chato, beijinho-risinho, ficar abestalhado. Não é pra mim, o amor é out, não sabia?
E chego em casa, presa em qualquer fortaleza inventada, escondida, trancafiada com infinitos flashes escapando do corpo, fugitiva de toda essa merda ocidental e grito, me debato entre os cinco seis mil cantos do quarto e choro e estou apaixonada por você.
Forço fossa e toca Tom rouco como sempre, Maísa mais rouca do que nunca, e até Paul com aquele sorrisinho besta repetindo all you need, all you need is love. Mais flashes, me afogo em Vinícius, e Hilda, e Neruda bêbada de palavras nobres, sonhos doces, pálidas donzelas, perdida em desejos sujos, saudades. Só quero-preciso de amor.
Olho no espelho, encaro, cinco, dez, cem minutos, nada muda. Um pouco bonita, um tanto comum é verdade, tão jovem e tão cansada, de quê? Menos de vinte anos explodindo vidas eternas, cicatrizes que tremem, flashbacks quase insuportáveis, cansada de tudo isso que morre um pouco a cada novo não.
Cada horizonte eterno que se anuncia, vôos apicais, rasantes, apicais, montanhas-russas. Tão, tão forte. Cansada. Ainda assim, um quê de encanto, mistério, sabedoria estranha. Como posso ser tão neutra pra você, mortal perdido criança de farol, enquanto sou doce salgada explosão de sabor pra outros deuses? Repasso, refaço, não vejo, não quero, tenho raiva de mim.
Não me manda de volta ao meu poço perdido, já cheguei ao fundo, como descer mais? Me puxe, amarre, mate ser for preciso, mas querido, você não ia me salvar?
Eu só quero-preciso, all you need is love.
Meia-noite, meia hora de tictac, não acompanha meus desejos. Nunca irá acompanhar. Tenho, sede, fome, frio. Quero mais, não me contento, quero tudo.
Penso outra vez no teu nariz já quase quente, nos teus braços mais fracos, no teu gosto um tanto pior. Volta tudo tão, mas tão real, sem abestalhamento ilusão projeção paisagem e em momento algum esqueço que quero gritar de novo afundando no molhado de ti, que me perco no teu ombro de perfume barato, que congelo teus olhos, que estou um tanto, um pouco, estou sim.
E que como quero, só respiro, por favor, eu imploro, ‘cause all I need is love.


'Carlos, sossegue, o amor
é isso que você está vendo,
hoje beija, amanhã não beija,
depois de amanhã é domingo
e segunda-feira ninguém sabe
o que será.'

segunda-feira, 30 de março de 2009

confissões

-
No início foi insuportável. Não sei se digo no início, porque já faz muito tempo, e em alguns momentos ainda sinto como se tivesse recém aberto os olhos após sonhos-pesadelos-negações. Confusa, bêbada de insônia. Depois tornou-se terrível, vício, obsessão, procurar a cada segundo o motivo pra viver o próximo. Mais tarde, achei ruim, dor de cólica no último dia, nunca mata, nunca passa.
Agora não defino mais. Sei sobre o que existe, não gosto e tampouco aprovo, não me afogo nem encolho. Assumo que o que está lá, longe, indevassável, são labirintos para meus braços curtos. Frustração, impotência, ando em círculos. Respiro uma, duas, dez, sempre muito devagar: C’est la vie!
Várias vezes quis te falar da diferença fundamental entre nós dois, várias vezes (in) completei sons, gemidos, sussurros mudos, nunca tive coragem. É, também não acredito nisso, tampouco me orgulho, mas enxerguei - escorreguei partes de mim, projeção, hipocrisia, modelando o que pudesse soar mais compatível entre água e óleo. Quieta, chata, tom-pastel: era isso o que você queria, era isso o que eu iria ser.
O nosso abismo sempre foi que eu precisava de paixão, ir ao fundo de todas as sensações, buscar verdades bruxas piratas fadas magia, sentir e sentir mais, sem limites ou controle. Você com um pouco de atenção vez em quando, um carinho sutil, prato-feito não decorado, ficava feliz o suficiente. Eu queria gritar enquanto te ouvia falar tão manso.
Ironia genial, entre o 36 nós íamos. Eu querendo 80, 90, milhões, você insistindo pelo 8, até 7, por que não zero? Sempre foi mais um desafio do que o puro-pleno amor. Guerra de egos, petulância que escorria. Dois Deuses lançando seus raios mortais, colando corpos com técnicas baratas, persuasões calculadas, estratégias reais no nosso faz-de-conta. Brincar de casinha, sorriso Doriana, objetivo eterno. E você foi minha falha. Invencível, feliz e pleno com mais um buffet livre de comida barata, enquanto eu só me contento com caviar e champanhe europeu.
Meu orgulho foi apedrejado, empalado, esquartejado. Dependência sutil, com requintes de carência, sonhos eróticos, histórias criadas e repassadas infinitas vezes pra saber – novamente – o jeito certo de agir, caso houvesse uma próxima.
Fato é que sempre fui boa demais pra você, mesmo que se forme uma aura arrogante ao redor de minha palidez, eu sempre fui, sim, boa demais. Também crente demais, pura demais, muito demais. E sempre vi no menino perdido e pedinte o homem formado e pronto pra tudo o que viesse ser. Ser, essa é a palavra. Ser o quê? Não importa, sempre algo. Nunca neutro, nunca nada, o que fosse necessário para sentir. Dor, gozo, fome, paixão. Era isso o que importava, o que foi. Foi, não é triste? Foi e nunca mais será, o fim do amor é nunca mais, não é mesmo? Mas não diga nunca, ainda vivem sonhos memórias pensamentos criações - energia própria, inabaláveis - sempre é, quando queremos que seja, não diga nunca, nunca mais.
Não consigo lembrar se te amo, se ainda te quero, se sinto saudades. Não consigo porque nessa inconstância constantemente me divido em milhões: cada uma formatada pelo meio em que está. Polipolaridade, quero ser a forte saudável, sou mais eu, adeus, adeus. Me pego boba nostálgica vivendo exatamente cada momento de fraqueza em que poderia ter nos salvado. Respostas nulas, sem persuasão. Ainda consigo me culpar.
A questão era acreditar, não era? Repetir incontáveis sins, Sim, podemos, somos, queremos, vamos. ‘Meu amor, um dia, nosso horizonte vai se anunciar, eu te amo, você me ama, um dia, um dia’. Quando? Quando o amor acabar, quem sabe.
Doente, contaminada, tenho medo de passar meu vírus mortal a qualquer tentativa de toque. Afasto, tenho asco, pavor. Não quero multiplicar essa sensação em outros, não quero ter que ser você, enquanto já tenho que ser eu.
Encostada na parede, apoiada na janela, cadeira, pernas cruzadas, e espero o momento em que vou ouvir - querida, faz um pão de queijo, vem deitar comigo, vamos ao cinema. Devo estar surda, devo estar louca. O único som possível é o do vento nas árvores, cachorros descontrolados, moscas batendo milhares de vezes suas asas pelo ar.
Esperei até o último instante, que sucessivamente se transforma em penúltimo, e mais outro, e outro, e vários. História-sem-fim, me apunhalo a cada final tentativa, ressuscito com outra nova, ato-falho, mente burra, coração fraquejado. Tremo muito.
É para você que escrevo, gastando meus momentos vazios. É para você que nunca vai ler nada disso, que se ler não vai entender, que se entender vai odiar. Adoto as mais fatais expectativas porque o conheço: Snow king, empedrado, olhar voltado todo para dentro. Mas é para mim que escrevo, gastando minha vida vazia. Para que eu leia incontáveis vezes, entendendo tudo perfeitamente, odiando não sentir nenhum ódio por você. Assumo a melancolia a cada espelho, reflexos d'água: Snow queen derretida, pedras que se decompõem, olhar voltado todo para nós.
Não vai dar tempo, vai? Aquele dia não existe? Ilusão, mero passatempo, clichê transbordando descaso. Já está ficando tão tarde. Quando sentei aqui estava tomada pelo escuro em meu corpo, confundindo-se com o céu sem estrelas. Agora o dia já ameaça seus raios coloridos.
Mais uma noite perdida por você. Mais uma noite de ruídos periódicos como torneira que pinga, à espera do que não se vai ouvir - carro que buzina, lotação que pára no portão - é você, pode ser você, por que você não veio? Madrugada termina, perco a noção do tempo. As horas já não mais existem, tudo se define por quando, Deus, será que você volta. Nunca mais? Tudo bem, não faz mal, o eterno é belo e cruel, pesado, como café e cigarros antes de dormir.
Estou cansada, cansada de tudo o que tive e não tenho mais, cansada de tanto amor que me proíbem de sentir, cansada de querer gritar e violentamente me calarem a boca.
Quero você, você sabe. Pleonasmos infinitos, quero querer você, porque preciso descansar. Quero querer você porque nosso amor soava como a esperança perdida de todos os séculos de medo e horror. Quero querer você, querido, porque preciso de algo vivo, rico, puro eterno. E o mundo é muito sujo - deve saber - perdido, podre, não há saída, meu bem.
Voamos para Marte, Saturno, Plutão. Outras galáxias, universos, buracos-negros infinitos. Fugimos de toda essa peste, doença suicida, massacre, chacina. Quero querer você, amor, porque preciso de vida. E o que sobra quando você não vem é overdose, roleta-russa, guilhotina, 38.
Outra lotação, olho afobada, passa reto pela fresta da porta aberta.
Você não veio, e é sempre morte.


"Como é que se explica que eu não tolere ver, só porque a vida não é o que eu pensava e sim outra? Uma desilusão. Talvez desilusão seja o medo de não pertencer mais a um sistema. No entanto se deveria dizer assim: ele está muito feliz porque finalmente foi desiludido. O que eu era antes não me era bom. Mas era desse não bom que eu havia organizado o melhor: a esperança. De meu próprio mal eu havia criado um bem futuro. O medo agora é que meu novo modo não faça sentido."

sábado, 7 de março de 2009

A Flor

-

Semana passada vi a flor mais bonita que existe no mundo. Não só era a mais bonita, como tinha um perfume que me deixou bêbada, cores absurdas, cegantes, magnetizante da raiz à última pétala.
Eu sei que é engraçado encher de adjetivos pomposos algo que mal cheguei a sentir o gosto de corpo e alma e, distante, olhei por poucos minutos. Também não tenho como provar para o resto do mundo que ela era realmente tudo isso que aqui digo e, mesmo que reencarnasse em Michelangelo, Rembrandt, Van Gogh não seria fiel à realidade.
Fato é que quero me dar uns tapas até agora porque não sei qual o nome da rua em que lá ela se exibia, trazendo todo o sol e qualquer outro raio luminoso escondido só para ela, como holofote atrás de estrela. Não lembro do número da casa onde estava segura e fixa em um vaso que sequer vi, não sei nem mesmo se foi aqui em Porto Alegre.
De qualquer forma, ela brilha em minha cabeça de uma forma que me faz querer gritar. Me hipnotizou, a flor. Arrancou e mandou para longe todas as coisas que impedissem meu campo de visão, escancarou, embora imóvel, que eu não poderia olhar para nada a não ser ela.
Com meus olhos ardendo, não me senti ao menos digna de chegar mais perto. Tocá-la então, ousado demais. Olhava de cantinho, como quem sente medo de abrir os olhos completamente depois de ter passado séculos no escuro.
A flor resumia com perfeita exatidão tudo o que existe de completo. Ela era tudo, tudo era ela. Resumia o mundo em um relance de milhões de cores, sensações. Carregava dor, paixão, plenitude. Tinha a cara cansada, de quem espelha experiência, mas a aura jovem, nova, enérgica. E não sei ao menos seu nome. Tampouco me atrevi a inventar apelidos ordinários que pudessem manchar sua perfeição quase inanimada. Era só A Flor. Em maiúsculo.
Estranho é que faz sete dias seguidos e ininterruptos que sonho com ela. Vejo outras, centenas, milhares, imensidão de irmãs - primas, amigas íntimas - mal consigo ver onde terminam e fico tomada de paixão. Me vejo intrusa entre todas elas, imóvel, lágrimas nos olhos, emoção borbulhante. Quero ser parte de tudo aquilo e não consigo. De qualquer forma, torço para que o sonho dure para sempre.
Acordo sempre com a mesma sensação de paz e desespero. Não abro os olhos devagar, e sim levanto meu peito como bala de canhão, com seus freios inundados de óleo que me impedem de ir devagar. Encantada e com medo.
Tenho pena de mim, sozinha e, noite após noite sem conseguir me encaixar - mesmo que tente, esforce até sentir dor - frente àquela beleza cegante. Pena da Flor, tão exuberante como solitária, não merecedora de nenhum reles mortal.
Passo horas tentando teorizar sobre a confusão que a maldita-sagrada me causa, encontrando uma explicação inventada, que possivelmente é equivocada: Todos nascemos flores, não tão bonitas, nem tão cheias de alma e cor, apenas flores, em minúsculo. Alguns de nós, porém, começam a sentir a tinta pingando por todos os cantos, perfumes que jorram e fazem cambalear de prazer, raios infinitos destinados a nos encontrar. Viram Flor. Por que eles? Não sei. Talvez tenham encontrado algo que ainda não encontramos.
Pensando nela, penso também no maior Amor que consigo imaginar. Outro que, imutavelmente, aparece em maiúsculo. Sempre os aproximo do mesmo sonho, talvez o único lugar onde sejam possíveis.
Fato é que Amor e Flor nasceram para serem imortais, para seduzirem e aterrorizarem todos os que se atrevam a dar as caras perto de suas ruas, pararem na porta de suas casas, se sentirem não dignos de seu esplendor. Mais certeiro ainda, é que seus endereços são sempre sagrados, escondidos, e que eternamente teremos que nos atirar frente à becos inóspitos, quadras escuras, esquinas perdidas com a fé desesperada de os encontrarmos por acaso. Para ficarmos inebriados de idealismo, fazermos parte daquilo que nossa vida nômade e cética normalmente tenta nos convencer de que não existe.
Mas vamos esperar por mais. Muito mais. Mais do que qualquer dia achamos que fosse possível, mais do que nossa falta de Algo possa tentar nos influenciar.
A Flor me trouxe esperança, derreteu meu coração já gelado frente a desgraças, erros e quedas. Sei que ela é real, tenho certeza de que provavelmente não a verei de novo, mas ainda tenho sua imagem brilhando cada vez com mais força, e ainda acordo com o mesmo peito que pula rápido e descontrolado. Mas vou tentar perder o medo. A Flor é perfeita sim, e eu sou carne, osso, víceras. De qualquer forma, ela apareceu para mim, e imagino existirem outras (e outros), várias, em algum lugar que nem imagino. E nem quero, só sigo acreditando. Na minha Flor, no meu Amor. O que me faça abrir os olhos tranqüila, depois de um sonho em que faço parte do intocável e pleno. Que arda, mas não machuque. Que pulse forte, sem arrebentar. Que seja o mais bonito do mundo, com perfumes que me deixem bêbada e cores que me ceguem. Que me magnetize. Que eu prove de corpo e alma, por incontáveis minutos.
E que exista, só peço que exista.

'Que imensa miséria o grande amor - depois do não, depois do fim - reduzir-se a duas ou três frases frias ou sarcásticas. Num bar qualquer, numa esquina da vida. Ai que dor: que dor sentida e portuguesa de Fernando Pessoa - muito mais sábio -, que nunca caiu nessas ciladas. Pois como já dizia Drummond, "o amor, caro colega, esse não consola nunca de núncaras". E apesar de tudo eu penso sim, eu digo sim, eu quero Sins.'

quarta-feira, 4 de março de 2009

epifania

-
Eu queria te dizer que acho que você nem gosta mais de mim. E mais ainda que mesmo assim eu gosto de você. De uma maneira que eu nunca entendi e suponho que nunca vou entender. De um amor - amor? Tão homicida que despedaça tudo o que existe dentro e fora de mim. Não pós, mas pré-fim, ou melhor, durante.
Queria te dizer que você tem o motivo errado, eu me confundo e não sei por que. Que algum poder magnético te faz de ferro e me deixa imã, bloqueada por infinitas barras de vidro cintilante. Consciente e perdida. E cada vez com mais medo.
Medo que contorce todos os meus reflexos, enrijece meus músculos, borbulha meu sangue. Medo de apodrecer aqui nessa cidade perdida, de me perder no meu corpo partido.
A cada baque do relógio imagino se o tempo fará seu trabalho sozinho. Amanhã faz sol, e depois chove, e abre um arco-íris efêmero e tudo está bem. Outro baque, novo dia ameaça. Não consigo acreditar em ideal nenhum. Já faz mais de um mês. Um mês de deci-mili segundos procurando traduzir o que nunca serei capaz, de decepções ridículas pelo que poderia ter sido e não foi, de goles de realidade me encurralando em alguma antes curva velha, agora beco imundo e sem saída.
Não sei encarar. Cambaleio em doses homeopáticas de anestesias e tranqüilizantes para que fique tonta, cega. Não quero ouvir, e viro surda também. Para todas as verdades tão novas que já foram repetidas. O dualismo mascarado que tenta me arrastar para cima.
Você me deixou aqui. Abandonada, desesperada e perdida. Sozinha com meus demônios trancados a sete chaves. E como se me torturassem, cada uma gira silenciosamente, sem avisar quando estará mais perto. Nada tenho senão esperar mil monstros imunes à minha surdez, visíveis aos meus olhos, obrigações fatais.
Perdi as armas, você me mata e eu me deixo morrer. Insisto no fim mais doloroso que consigo inventar, pra que dure muito, nunca acabe.
Então os papéis derretem, e o culpado irrefutável se confunde. Eu me deixo morrer.
Eu, sempre eu.
Olho no espelho e não reconheço. Quero quebrar em todos os pedaços o estranho você que aparece em meu lugar. Não consigo aceitar minha auto-sabotagem, masoquismo irreparável, tudo que nunca quis e, enfim, concluí. Sem ingenuidades residuais. Com um surto de personalidades perdidas, me apunhalo sem nem perceber, salva apenas pelo estranho à minha frente, que gira sadicamente o metal na minha barriga. Bato no espelho, sangue nas mãos e no rosto. O que, por deus, aconteceu?
O medo de minha loucura me faz querer ir embora, mas a sujeira em minhas mãos não me deixa correr. Você não tem mais nada a ver com isso.
Meu corpo se duplica em estratégias que não lembro de ter criado. Triplica, multiplica, inventa vozes, táticas em um jogo único de plenos fracassados. Eu contra mim, depois de depressões incontáveis me engolindo vorazes, me convencendo de que era eu contra você.
Meia noite em ponto. Um raio brilhoso pinta o céu todo negro de um branco estranho. Um click em minha mente, à verdade que se anuncia.
Não consigo me recordar de nenhuma dose de amital-sódico me deixando em estados semi-hipnóticos, mágicos, paralelos, para manipular minha memória inventando a que não existe. Nunca existiu. Você não tem mais nada a ver com isso.
Guerra declarada, respiro fundo, abro os olhos, destapo os ouvidos e morro frente aos mil demônios impiedosos, voando livres, fazendo dançar suas palavras cruéis, lentas, calmas e determinadas, que entram em meu ouvido estraçalhando tudo o que encontram. Me despertam. Me dão incontáveis tapas na cara, deformam meu rosto que ironicamente cada vez mais volta a parecer com ele mesmo. Esfregam silêncios guardados tão bem quanto eles, me libertam. Me arrastam pra cima do poço sem fim, e mesmo feios, cruéis e tão reais, me deixam ciente de que um dia eu irei reencarnar. Para uma nova vida, sem suicídios, homicídios, homeopatias, tonturas, cegueiras e surdez. Sem estranhos tomando o lugar de meu reflexo. Me desejam boa sorte e vão embora para sempre.
Esse é só o meu começo. And you are free to go. Goodbye.


'Nesse sentido, ciclo seco é forte, porque nada vindo de fora o abala, e imutável, porque de dentro nada vem que o modifique. E sendo assim, com alívio vou quase concluindo, pode se deduzir que. Não, não se pode deduzir nada. Só que passa, por ser ciclo, e por ser da natureza dos ciclos passar. Até lá, recomenda-se fazer modestamente o que se tem a fazer com o máximo de disciplina e ordem, sem querer novidades. Chatíssimo, bem sei. Mas ciclo seco é assim mesmo. Todo mundo tem os seus, é preciso paciência. E contemplá-lo distante como se estivesse fora dele, e fazer de conta que não está ali para que, despeitado, vá-se logo embora e nos deixe em paz? Eu, francamente, não sei'

sexta-feira, 27 de fevereiro de 2009

eu juro que levo teus olhos castanhos comigo

-

Alguém tira esse peso de cima de mim, faz tempo que me esforço para respirar um pouco, caio sempre no mesmo poço lotado até aquela escuridão suja desesperada. E como uma criança encolhida, com cada órgão contraindo-se para sentir menos dor, o coração pulsando um pouco menos, a boca rindo um pouco menos, os olhos brilhando tanto menos. Esmagada, nas paredes que parecem diminuir a cada segundo e a voz que não sai, presa entre o peito cada vez mais apertado. Os minutos que se foram, a sorte, fé que se esvai. A condição irritante de perder o chão em um início, para construí-lo devagar e da forma mais bela, apenas para incondicionalmente perdê-lo mais uma vez.
E a procura de novos e frescos para que o outro seja apenas uma brisa velha que balança de vez em quando, mas nunca derruba, forçando intensidades insípidas, químicas ficcionais, e nada pode ser feito. Só o peito que se aperta, a voz que não sai, o corpo encolhido. E as milhares de lembranças, sempre as melhores, me engolindo vorazes.
As três letras do medo, FicoImaginoMais uma vez, e mais uma e mais outra, a ficção que me atrai. O conto fantástico chama e arrasta e salva. O primeiro e, então, o pior, que carrega o único consolo de me convencer de que ninguém nunca será capaz de me fazer um mal igual.
E amanhã o dia nasce, as buzinas apitam, os tics voam, e ele beija a outra, e diz que a ama como uma vez me disse docemente, e declama Neruda com a mesma sensualidade. E eles dividem as noites eternas tão claramente, ela dá um sorriso um pouco melhor, um toque um pouco melhor, e não sei por que imagino que faça tudo tão melhor. Perco a noção do desespero.
Você sorrindo e eu morrendo. E me dou o direito de ser egoísta e não ficar feliz por você. Abro mão dessa benevolência criada, altruísmo falso pra te dizer que não, não, não quero que dê tudo certo entre vocês e não acho super bom que você ame tanto outro alguém e que ela te faça tão bem. Eu quero mais é que não dê, não seja, não viva. Que morra, porque a morte do amor é tão pior quando sei que você está logo ali. E sei que vai me chamar de imatura e dizer ainda-bem-estive-certo-o-tempo-todo, mas a minha noção de paixão precisa de corpo e de alma e aqui.
Enquanto você desapaixonava eu fui roubando tudo para mim, inventando espaços, construindo novos quartos, procurando uma forma de abrigar aquilo que você sentiu um dia e eu sempre senti e agora misturo tudo nesse lugar que encontrei. E fico enlouquecendo a cada espelho imaginário em que não deixei de enxergar.
Como um sopro me divido pelos cantos, com cada pedaço doendo mais do que os outros, cada um morrendo em seu próprio suicídio. E o tempo cruel que em mim só aumenta a ferida, em você cicatriza sem deixar marcas, como se nada em mim fosse digno de ser lembrado, como se eu pudesse ser mais um rosto pelo qual é possível se passar reto. Você nunca vai ser neutro. Posso te odiar com toda a força que encontro ou te amar tão mais além de mim que nada mais importa. E só você importa.
Preciso enfiar as mão dentro de todas as lembranças e limpá-las uma a uma, acordar do pesadelo que lentamente me destrói, não saber que você existe para nunca mais te desejar tão bem e mal.
Fim a todos os desejos, suplico. Fim ao teu nome, ao teu gosto na minha boca, ao teu cheiro no meu corpo. Morte ao teu signo, ao teu beijo, ao teu sexo e a qualquer coisa que faça com que eu destrua todos os momentos felizes porque eles nunca serão assim tão perfeitos.
Perfeição que nunca existiu, confesso. Tudo tão claro em meus pensamentos e confuso a cada flash realista. Nunca foi, nunca vai ser. Só sei te querer pelo que penso, só sofro pelo que quis. Você foi, mas não era. Mais um menino perdido tentando convencer ao mundo que pode ser homem. Mais um corpo desestruturado na imagem falsa com cheiro de mofo. Não te enxergo. Te amo pelo que não és, e mais embaço no teu verdadeiro eu. Não te reconheço, na verdade. Te criei, e destruo. O amor idealizado é o único perfeito. E em mim você é sempre meu, do contrário não consigo. Eu não resisto amor. Amor. De faz de conta, como sempre. Sem final feliz. Você sorrindo e eu morrendo.


"Chorar por tudo que se perdeu, por tudo que apenas ameaçou e não chegou a ser, pelo que perdi de mim, pelo ontem morto, pelo hoje sujo, pelo amanhã que não existe, pelo muito que amei e não me amaram, pelo que tentei ser correto e não foram comigo. Meu coração sangra com uma dor que não consigo comunicar a ninguém, recuso todos os toques e ignoro todas tentativas de aproximação. Tenho vergonha de gritar que esta dor é só minha, de pedir que me deixem em paz e só com ela, como um cão com seu osso. "

terça-feira, 30 de dezembro de 2008

des-ESPERO.

-
Você já não me quer mais. Disse assim, baixo e confuso, não pra quem quisesse ouvir, mas eu escutei bem.

E caminho, caminho, a estrada é longa, sabe, mil esquinas temos por aí, sabe que gosto delas. São o encontro. O encontro de alguém. Quem sabe o nosso - somos alguém?
É que é tão, mas tão triste continuar caminhando sem acreditar. E não conseguir parar, mesmo que tente, ou tente tentar, ou finja tudo isso encontrando uma maneira de nem tentar mais. Ter medo de perder o que não se encontra ou morrer por esquecer o que está morto. Falar tão errado, sabe, tão feio, fingido. Tentar fazer com que tu te apaixones pelo que não sou, porque não funciona mais ser quem eu sou. E invento formas de tu seres outro também, te encontrando onde não existes, te suplicando em corpos que não são o teu.
Sabes que procurei tanto, incansável e crente - entre horas eternas - ou tu, ou eles que fossem tu, e descobri mil amores que não amei, e que também não consigo. Porque vejo tudo. E tudo existe para que eu veja. Porque eu senti, antes que pudesse recuar, negar, expulsar. E agora é tarde, amor, me atrevo a te chamar assim, me desculpe. Porque enxergo só a alma. E a tua me chama, como nossos olhares antigos, pedras sagradas, que nunca esqueceram de me gritar.
Fica em silêncio no meu silêncio e te tira de mim. Ou me agarra com tua força bruta doida de êxtase incontrolado. Eu não agüento não saber se te amo ou me amo demais. Me desintegro pelos cantos em que tu pisaste, procurando um resgate sem nenhum reforço. Estou despedaçando. E sinto a tua falta em todos os lugares em que não estou. Porque só queria estar em ti.
Sinto, sinto quando paro entre tantos movimentos que tentam me fazer não sentir. Mas eu respiro, bebo, mato a minha fome dessa falta, deito nela como quem deita na grama verde-fria e estranhamente confortável. Eu sinto a tua falta porque a lembrança existe, e lidar com o passado só é fácil-bom quando ela não está mais lá.
Não me diz que você quer que eu supere um entre fins tão bonito assim. Não me diz que não vê o tanto de lindo que é meu rosto inchado procurando o teu rosto pra ficar colado como super bonder sem segunda opção.
Ah, não me deixa apodrecendo pela madrugada que se arrasta sobre mim. Invento personagens que nunca serei. Hobby desesperado, viro princesa dama atriz pra passar o tempo. Sou mil por noite - um minuto no relógio - mas sou sempre metades.
Minha sujeira foge da minha paixão pra que contigo seja pura, nua, crua. Me desculpe por ser humana, imperfeita pros teus desejos, exigências, expectativas. Me apresento novamente como deusa impecável. Passa mais um minuto.
E você já me disse o quanto eu estrago tudo o que não podemos ser tentando assim te convencer de que nós podemos. Mas o meu descontrole é imune às leis, tabus, cartilhas. Não tenta me explicar o porquê de tanto não, persuasão burra me chamando de imatura porque não mando mais em mim. Se eu pudesse nunca mais mandaria flores, olharia pra cima e faria pedidos, ou relembraria fotos fatos e tuas feições de homem criança, eu nunca mais pensaria que tanto foi.
Eu penso, penso porque sinto, porque sinto tão forte que nem com esse monte de água fria que tu despeja na minha cama eu consigo te tirar de cima dela nos meus sonhos. Pensar não adianta. Eu não sei ver o que não existe.
Quem sente é burro, ‘Quem não ama fica rico’. Eu sei, eu sei, mas tu não entendes que eu não consigo? Não posso, não quero, viro perseguidora boazinha, que só encontra pra encontrar. Final feliz.
Já deixei de saber. Tu não entendes que tu é a salvação perdida de todo o meu ócio de agonia, ela em casa, à vontade sentada tomando o teu lugar?
Odeio esse vazio melado que fica me colando em cada batida de sol. Mas é tão pior poder ver que a culpa não é tua. Não quero enxergar. Rezo pra tua alma, suplico ao meu controle, preciso de um culpado. Odiando tudo é fácil. Quero respostas, saída. Um dia lindo, a calmaria distante, morte da saudade que esmaga minha cabeça tentando gritar o quanto eu não posso descobrir.
Estou condenada. A uma verdade que não existe, a uma resposta que não me deram, a um destino que escolhi. Uma avenida bifurcada atropelando sinais vermelhos. Explosões. É só dar a ré, não vê? É tão mais fácil que tu voltes. Sei que sofrer é importante, e dizem que viver é mais, então, deus, é tão mais fácil que tu voltes.
O presente não existe, o passado a sete palmos, temos todo um futuro. Temos sim. Acredita nas minhas palavras pobres, de quem força fonemas bonitos até a última gota. Existe algo aqui. Existe um pedaço de ti, querido, que nunca morre com meus outros pedaços. Tu nunca estiveste tão vivo.
Suspirando entre desgastes, me agarro ao que restou, de mim louca perdida, de ti mocinho de cinema, de nós na última cena. Nos meus devaneios, delírio seguro, cruel suicídio, no único lugar onde ouço assim, alto e claro, e pra todo mundo ouvir: você ainda me quer. Mesmo que só em mim, dentro de mim, de mim para mim.


'Ele a olhou. Ela, louca de amor por ele, não o reconheceu. Ele havia deixado de ser ele: transformara-se em símbolo sem face nem corpo da paixão e da loucura dela. Não era mais ele: ela amava alguém que não existia mais, objetivamente.'

domingo, 21 de dezembro de 2008

Eu, eu também.

É terrível. A fragilidade de tudo isso, catastrófica. Andei assistindo a alguns filmes depressivos, acho que alguma parte de meu inconsciente precisava vazar por algum canto, borrando meu rímel de uma forma quase poética. Não esperava encontrar medos, angústias, agonia insuportável, coisa não do presente, isso que assusta: possibilidades - que espero, perdidas - do futuro.
Não choro por ti, ou por mim, pelos meus desejos perdidos, meus sonhos que já estão a dormir. Choro pelos outros. Que egoísmo esse o meu, não é mesmo, querer tanto libertar meus demônios, que preciso recorrer aos alheios. Fiquei com um pouco de raiva por isso, ao mesmo tempo em que percebi o quanto estava bonita a imagem do olho borrado no espelho. Patético, essa sensibilidade triste, risível na mais clara tragédia. Juro que se acontecesse algo assim comigo, como no filme depressivo, de ficar presa em meu próprio corpo - sem prazeres carnais, pecados forçados, saídas abertas para recorrer - não suportaria muito. Engraçado que o que me soa mais íntimo desde que respiro seja minha mais cruel prisão. E sei que a de todos.
Talvez por isso o álcool, cigarros, a própria voz pra dividir ou ao menos gritar para um simbólico inseto existente em algum canto. Ninguém sabe conviver consigo. Ninguém quer a demência de si. Todos roboticamente buscando uma suposta auto suficiência que expulsam em cada tentativa de diversão, amizades, controles remotos, música, três dois quatro meia zero sete - deixe sua mensagem após o bip - tu, tu, tu etc.
Porque somos todos burros, burros e cegos, cegos e fracos, de nem tentar entender o que procuramos. Nem ao menos sabemos o que é a busca, só nos move o instinto incessante de buscar. Explica-se aqui, o porquê de esse pavor ser tão risível. Lidamos com a mais descartável e perecível identidade. Nós. Frágeis, terríveis, burros e cegos. E sempre à procura de algo que não reconheceremos quando encontrarmos.
Tudo isso só serviu pra me dividir em dois pedaços, que por sua vez fizeram com que eu me sentisse enjoada, de mim. Fútil, foi a primeira que apareceu. Imatura, a segunda, tentando me acalmar. Humana, a terceira opção, encontrando o mais hipócrita otimismo que devo carregar aqui.
Enfim, fiquei agradecida. Por subir as escadas, pegar meu copo de água, ir ao banheiro sozinha, lembrar que eu também era capaz de tomar banho sozinha e fazer qualquer outra diversão particular sozinha. Sentir dor, estava tão bonito o sentir dor. Adorei o band-aid com aquela cor sem-graça descolando da minha pele. Adorei o corte na minha perna onde fiz questão de passar a mão. Eu podia sentir tudo.
É engraçado como nós mudamos prioridades fixas e concepções universais quando a batida de uma tragédia aparece como uma possibilidade. Pode. Não vai (não se pode esquecer a certeza imutável do poder do pensamento), mas é possível.
Sorri sozinha por poder jogar tudo o que eu penso nesse tictac e não estar limitada às minhas memórias e criações intangíveis. Eu podia fazer o que quisesse, eu estava inteira, e eu conseguia gritar para qualquer inseto que eu ousasse escolher. Essa foi a parte um, a que não me incomodou tanto. Digo tanto, porque é sempre ruim quando a gente percebe que as coisas terríveis são possíveis, mas não é o pior já que ainda não aconteceram.
A parte dois, fútil, imatura e humana, foi que eu não conseguia parar de pensar em ti. E de como é uma grande merda essa necessidade de estar longe para que tu sinta a minha falta, ser ríspida pra que tu exija um beijo – mesmo que não passe do papel, não ligar pra que tu tenha essa vontade. Não sei se fiquei irritada, se era saudade, medo, mas era a tua imagem que vinha na minha cabeça quando eu pensava naquele Pode. Por que não queria meus pais, amigos de anos, atores famosos, ídolos, anjos? Eu te desejava como quem afunda agarrado ao seu último suspiro. Eu ainda precisava de ti. E por mais que lutasse, tentando me prender à minha auto-suficiência expulsa, inventando um motivo para qualquer dessas buscas irritantes, mesmo assim eu estava presa. Eu me sentia - gritando pelos cantos, correndo pelas escadas, servindo minha própria água - completamente paralisada pelos meus sentimentos. E agora tu deves entender por que me senti tão mal. E não quero te contar toda essa história boba para que tu te sintas culpado, ou obrigado a me entender, ou sentir o mesmo que eu. Eu só queria te mostrar o quanto isso é traidor. Meu pensamento, sabe. Ao mesmo tempo em que tu serias meu primeiro pedido de conforto caso eu estivesse paralisada por fora, me faz sentir plenamente imóvel por dentro. E fui capaz de comparar toda essa coisa mágica e cruel que tu faz comigo com uma história terrível de um homem fardado ao destino de seu corpo e sua cama, excluído de qualquer sensação ou comunicação em seu mundo possível. Essa era a parte dois, com sua primeira opção – abandonemos a hipocrisia.
Me faz mal - embora não falsa - minha mente, dividida nesse triângulo básico, mandando o reward e repetindo o ciclo a cada segundo anunciado como significativo. Tristeza, agradecimentos, e como remeter isso a ti. Essa coisa totalmente fora do meu controle de relacionar o mais irrelacionável. Como eu agiria, tu daria uma daquelas gargalhadas bonitinhas, cantaria um daqueles pagodes insuportáveis – que eu tanto gosto, e se eu começasse a sussurrar Caetano sairia a reclamar da minha voz desafinada. Eu pouco me importaria. Estaria hipnotizada pelo desenho da risada, o cheiro, o gosto que ela tinha em minha boca. Cantaria mais. E como ela posso pensar em diversos outros tiques, manias, rotinas, que nem sei se são lembranças escancaradas ou desejos desesperados. Mas existem, dentro de mim. Te olhar não é o mesmo que te lembrar e te inventar. Por isso me desespero ao perceber que de nada adianta minha liberdade física. Estou limitada às minhas memórias e criações intangíveis, presa a minha cama de saudades e meu corpo de criações. E sem conseguir me comunicar com ninguém. Sou paralítica do teu amor. E foi só então que percebi que não chorava pelos outros, ou pelas possibilidades que não irão acontecer. Eu vivo elas, e choro por nós.

'Não muito confuso, assim confrontado com sua explícita incapacidade de lidar com. A palavra não vinha. Podia fazer mil coisas a seguir. Mas dentro de qualquer ação, dentes arreganhados, restaria aquela sua profunda incapacidade de lidar com. Você me ama pelo que me mata. E se apunhalo é porque é para você, para você que escrevo - e não entende nada.'

domingo, 7 de dezembro de 2008

please, save me the waltz

Decidi tanto que era você quem eu queria, repetindo inúmeras vezes que não iria parar, não iria te deixar ir embora, iria insistir até que você percebesse. E se não percebesse, tudo bem, não faz mal. Então eu seria sua para sempre, mesmo com você sendo de outro alguém. E ninguém nunca iria te amar como eu te amo, ou entender teus olhares complexos, tua mente se restringindo a cada palavra doce, tua fúria crescente com perguntas sem resposta.
E você, que pensa até antes de respirar, e o faz até melhor do que respira, iria lembrar de mim em algum momento, num relance infantil em que na tua consciência aparecesse um simples segundo petrificado, feliz ou triste, mas de quando éramos um Nós. Aquele amor puro que eu achei que sentia, aquela coisa qualquer, mas incondicional, que tive algum dia, tudo aquilo me fazia decidir que eu não poderia nunca mais ser mais nada daquele jeito para ninguém.
E os álbuns antigos, silenciosos e esclarecedores, munidos de olhares que gritavam ‘eu te amo’, ‘esse mundo só é grande porque eu encontrei você’, ‘te olhar é o suficiente’. Tudo aquilo me deixava suficientemente pronta para o tanto Não que viria cada vez mais freqüente. Te olhar era o suficiente.
A minha projeção perfeita, o montante de certezas consolidadas de uma forma que me diziam sim – você é o meu silêncio, me cegaram para a totalidade de outros sons que pudessem aparecer.
Descobri um jeito de expulsar a ínfima melodia que tirasse tua música de minha cabeça, ou aquela que eu inventei ser a que queria. Todos tinham defeitos, qualquer deles seria insuportável. Se antes amigos, tudo corria bem – preocupações inexistentes, palavras hábeis, olhares divertidos. Se depois amantes, era anunciado o caos – o mínimo seria motivo de ter nojo, nojo de não querer ao menos o pré-instante, nada antes de tudo falir.
E assim chegavam verões, um após o outro, eu mantendo contato, tu me deixando na posição que soasse a mais confortável. Sem respostas definitivas - era sempre muito cedo – cedo da manhã, do mês, do ano, da vida. Eu, inundada pelas promessas vagas, desnorteada com a falta de definições, aceitava as interrogações espreitando na tua porta, atrás de um Sim ou Não de verdade.
E assim tu me prendeste à tua pessoa. E assim eu me prendi a tal eternidade efêmera. Depois de um tempo, já nem munia mais certeza se tudo aquilo era real, na ironia de minha razão que definia a parte mais bonita de nosso conto como a minha pura ficção. Tu não corresponderias a tanto tempo de expectativas criadas, eu não agüentaria todo o meu sonho escorregando por madrugadas diferentes das inúmeras que sonhei.
Eu torcia, implorava por um futuro que me trouxesse outro, outro que fosse tu, tu quando me amou. Ao mesmo tempo em que meu desejo se perdia: será que seria capaz de colocar outro em teu lugar? E se sim, suportaria a pressão de mais uma promessa que não existe?
O amor está fardado à decepção, à imperfeição humana. Queria que fôssemos deuses, anjos, pura alma, desprovida de mágoas, responsabilidades, curto tempo. E é por isso que te escrevo, para satisfazer a mim. Buscando na consciência impulsiva de minhas palavras um algo que meu eu racional não é capaz de encontrar. Uma saída, mesmo que ela não exista.
Pois não sei mais como agir. Tenho todas as cartas na mão, em algum idioma estranho que não entendo. Está tudo em branco, querido, e todas as perguntas se ordenam, rindo do meu esforço como quem diz ‘não temos respostas’.
Tenho muito medo. Medo de enlouquecer, medo de esquecer. Que decisão posso tomar, quando a lembrança de meu maior prazer é melhor amiga do motivo de minha fúria? Estou condenada a mim enquanto tu existir, como se te adonasses de meus pensamentos enquanto não tivesses meu corpo e guardasse, intransferível em ti, qualquer pedaço de minhas vontades. Manipulando-as assim, me teria para sempre, no momento em que quisesse ligar - se sentisse sozinho, carente, abandonado pelo resto do mundo que não é preso a ti como me faço ser.
E fantasio, porque preciso de algo certo, e a certeza é proibida para ti. O mais concreto que posso ter são minhas criações. Sei que minha resposta, por ser minha, está em mim, e que te procurar para resolver meus dilemas é tão covarde quanto ter vergonha do que sinto.
Me descubro muito fraca quando percebo que tua imagem me bloqueia, que não traduzo as línguas estranhas, que me limito à tua existência. Qualquer muralha tem rachaduras. Qualquer castelo de areia é destruído com uma brisa. Eu despedaço com tua voz. A mesma voz que me diz coisas que finjo não escutar me leva ao êxtase simplesmente por dizê-las.
Mas para além de tudo, te agradeço por seres tão assim, ser transcendente da carne e do osso nesse mundo limitado a prazeres carnais. Eu agradeço porque tu me fazes sentir – suprema raridade – mesmo que tudo seja feio ou desesperador. E, assim, me desespero a descobrir que sou só mais uma daquelas pessoas que estraga as possibilidades por amá-las demais. Mas não tenho culpa se a vida ferve em mim, se nossa vida borbulha entre tantas vidas que deixamos pelo caminho.
Me dói esse tanto tempo que perdi, dedicada a algo tão unilateral, recebendo em troca o consolo de que ainda não estamos prontos. Nunca estaremos. Ninguém se torna completo para demonstrar seu amor. Não é o amor, em sua forma mais honesta, que deveria nos completar? Ou será que todos aqueles poetas eram falsos discursistas, munidos apenas da esperança de reconstruir um sentimento partido? Séculos de Shakespeare, Neruda, Vinícius, são só combustível para que eu sofra mais?
Ou talvez você simplesmente não seja a pessoa certa, e acho que nem sequer pensei nessa alternativa - nunca me atrevi. Estava sempre tão entorpecida de ideais estabelecidos, fracassos físicos, memórias mórbidas, que não me senti digna o suficiente para, com uma frase de poucas palavras, destruir tudo o que compus tão metodicamente.
Derrubei o espontâneo, espantei o novo, atrasei o futuro. Confiei em um destino criado solitariamente, naquelas idéias clichês de que quem escolhe sua vida é você mesmo. Talvez eu tenha escolhido sofrer e chorar, sentar e esperar, jogar o meu jogo de defeitos insuportáveis.
Mas vou ser sincera com você, mesmo que tenha tentado enfileirar esses fonemas incontáveis vezes, dessa vez eu não busco nada, eu só quero é ser sincera com você: acho que voltei a pensar. Tinha desaprendido o dom dessa arte, por medo, vontade, fé. Mas meu coração, por não suportar, enviou novamente teu contexto à minha cabeça, reiniciando todo esse processo de entender.
E se entender, vou desistir. Vou ler as cartas em branco, vou encontrar as respostas que me traziam tanta luta. Elas irão me trazer fuga. Eu sei, tenho um longo caminho para suportar, mas já readquiri minha consciência. Bêbada, mas existente.
E então te suplico pela última vez, enquanto ainda estou confusa, enquanto posso dizer Sim, enquanto não atravessei a rua: me traga um Sim, ou um Não, me dá a paz de tuas respostas, me faz te lembrar com uma certeza, ao invés de te esquecer com um leve Talvez.


"Estou tão desintegrado. Atravessei o resto da noite encarando minha desintegração. Joguei sobre você tantos medos, tanta coisa travada, tanto medo de rejeição, tanta dor. Difícil explicar. Muitas coisas duras por dentro. Farpas. Uma pressa, uma urgência."