quinta-feira, 21 de maio de 2009

faz de conta que faz de conta.

-

Já fazia algum tempo, não sabia exatamente quanto, se remexia insone. Havia tentado abraçar o travesseiro forte no peito, as mãos entre as coxas, barriga mergulhando no edredom, olhar fixo no teto. Nem mesmo ao pré-sono chegou, tão alerta, à espera. Pensou no feriado de segunda-feira que descontrolou seu sono, nas aulas a mais que a deixaram tão cansada, na semana banal e desgastante. Nada mudou. Alerta, à espera.
Eles já não se falavam há uma semana, logo depois daquele encontro estranho, uma intimidade um tanto teórica, profissional, tão preocupados. Um querendo provar ao outro o quanto sabia fazer o que estava fazendo. Ou então, quem sabe, necessidade preocupante, inexorável e recíproca, de fazer com que o outro se sentisse bem. Ela precisava deixar de ser tão pessimista. Era sexta, era o dia, era cedo. Cinco multiplicando vinte e quatro, quanto tempo já faz?
Tortura. Eu falo primeiro ou você? Devo ser muito fraca (o) mesmo, ele não liga, ela não fala, ele não sente, ela não sente. Cinco dias de estratégia, até que de repente, reviravolta. Começava o final de semana. Resplandecido entre a coragem de um ou outro, vinha o convite, transformando todo aquele aperto - ódio guardado - em uma explosão sincrônica. Na última vez pareciam um casal brincando de casinha atirados naquele sofá. O olhar dele medindo cada poro, cada ponto, penetrando tão fundo e cada vez mais no mais escondido dela até rir sozinho e dizer “Eu te acho cada vez mais bonita”. E ela imaginando que ele já soubesse, que ele já supusesse, não achava necessário cortejar de volta – estilingue, raio de sol no espelho – era tão óbvio.
Viviam assim: jogo não declarado, embora nada sutil, de segunda a sexta-feira pela tardinha. Era o limite. Logo depois, libertinagem, liberdade. Uma torneira pingando devagar, até encher o saco e derramar toda a sua água de uma vez só.
Não falavam de sentimentos. Ou melhor, falavam, mas não em um universo claro, seguro, aura cor-de-rosa, naturalidades. Ele se escondia por trás de sua arrogância sarcástica, ela em suas ironias constantes, como se fosse proibido ou perigoso falar a verdade. Como se a vulnerabilidade fosse dos maiores fardos, vícios, meio morte.
Estavam assim há alguns meses, pisando em ovos durante a semana, quebrando-os descontroladamente depois, comprando novos e repetindo o ciclo rotineiro tão imóvel. Seria tedioso e enfadonho se não ficasse clara a (in) clareza em que eles conviviam, tentando se doar sem parecerem entregues, bolando misteriosos discursos silenciosos, inventando mentiras sinceras, nutrindo muito bem as pequenas-esperanças para depois tomá-las como vitamina matinal. Quando um ou outro se cansava de toda a burocracia semanal, inevitavelmente era sexta à tardinha ou sábado, como se o corpo tivesse sido previamente programado para entrar em pane no exato momento em que receberia socorro.
Ela mantinha um medo mortal de parecer uma daquelas menininhas-bobinhas, o quarto ainda rosa, ainda breve. As idéias um tanto rebeldes – mas é da idade, diziam. O comportamento transitando entre o I Don’t Give a Damm, logo depois traduzia Já Sou Mulher Feita Gostosa, ta valendo, não?
Ele mantinha um medo secreto de não corresponder às expectativas dela. Era um tanto mais velho, vendia experiência, exalava uma segurança do tipo Sou Cachorro Pego Todas Mamãe Passou Mel Em Mim, quase sobre-humano, sem o conforto de poder falhar.
Por algum motivo que não procuraram desvendar ou aprofundar, enquanto juntos equiparavam-se. Ela não tinha que ser menina nem mulher, ele não tinha que ser semideus dotado de conhecimento. Ela era, ele era, eles eram. Sem fazerem qualquer esforço para ser.
O telefone, então, tocou. Por mais que não estivesse esperando ligação alguma, sabia que era ele, e por mais desprovido de estresses externos que o momento fosse, por mais que ela não estivesse sonhando profundamente ou suando gelado (afinal se revirava há algum tempo e já nem sabia mais quanto), mesmo assim levantou o peito pesado feito bala de canhão e atendeu, deixando de lado qualquer estratégia acerca de quantas vezes deveria esperar que soasse aquele RingRing antes de fazer algum movimento.
- Oi Madame!
O mesmo tom de sempre, pensou. É sexta, teve vontade de dizer, fingi que não te esperava, mas não me permiti fazer qualquer outra coisa, afinal, é sexta – as palavras quase escaparam por entre os lábios – senti sua falta, queria dizer. Mas só conseguiu responder:
- E aí.
- Tu ta em casa?
- Sim.
- Abre pra mim, to aqui na frente.
E desligaram.
Ele nunca tinha tido coragem, como ela diria, ou audácia, como ele diria, de ir até a casa dela. Sempre foram bares, cinemas, filmes que ela fingia gostar, músicas que ele fingia conhecer, casas de amigos, sofás e camas alheias. E ela, pensando em mil coisas ao mesmo tempo, não conseguiu fazer uma daquelas análises minuciosas sobre o porquê ele foi até lá, sobre o porquê ele não ligou antes, sobre o porquê não houve jogo algum dessa vez. Roupa, rímel, pente, pasta de dentes... Perfume! Ela não podia esquecer-se de passar o perfume. Aquele que ele dizia, enrolado, ser tão poço de embriaguez, como caminho para a sobriedade.
Desceu, ainda um pouco ofegante, meio embaraçada e insegura – ele só parecia domado nos finais das noites, e por um segundo apenas, logo antes de ir embora. Desceu assim, envergonhada como criança que pega na mão pela primeira vez. Não deu tempo de passar rímel algum, então seus olhos pequenos-naturais entravam em um certo descompasso com o resto do rosto um pouco mais largo. Fingiu cara de sono, desculpa boba por não estar impecável como sempre. Ele acreditou.
- Eu tava dormindo.
Apertou os olhos ainda mais, fingiu se espreguiçar.
- Tu fica linda depois de acordar, só não mais linda do que eu.
O sarcasmo egocêntrico de sempre.
Ela começou a odiar um pouco aquele bleg-bleg tão igual, ele começou a ficar incomodado com a aparente indiferença momentânea, meio desconfortável, um tanto sem ritmo, as máscaras ainda muito coladas no rosto de um e do outro, tudo, tudo errado.
Até que.
Aquela lua, meu deus, aquela lua exibindo-se e de repente quase salpicando seus pedaços de ouro-alaranjado, como chuva mágica, sobre eles. O silêncio. Talvez houvesse alguma moto barulhenta lançando suas buzinas, crianças chorando esperneadas, programas de tevê inúteis no vizinho ao lado – que insistia em elevar o volume ao máximo. Talvez. Para eles não havia nada além da chuva invisível da lua. A Terra, quase que automaticamente, se alinhava com o sol, com Marte, com Júpiter, que seja. O momento era exato: como em toda a sexta-feira ou sábado.
- Eu senti saudades tuas. Não sei por que vim até aqui. Parece audácia, não parece? Sempre achei que fosse audácia vir aqui na tua casa, tu sempre riu e me chamou de covarde ou idiota, mas hoje algo fez com que eu entrasse no carro e sem nem perceber, nem pensar, ligar ou planejar, virasse a chave e me arrastasse pelas ruas até aqui. Nem sei como cheguei, não lembrava o caminho. Acho que acabei de voltar a mim, na verdade. Devem ter me hipnotizado, manipulado, abduzido, acabei de voltar a mim. E estava sentindo saudades.
Qualquer solda fixa se quebrava, o mais forte metal derretia, começavam a expor o maior motivo de medo, embora nem lembrassem, nesse momento, o quanto era desesperador ficarem com o rosto nu.
- Me dá um beijo.
Ainda antes de se aproximar, ele esticou seu braço devagar para afastar os cabelos mechados, muito lisos, que cobriam os olhos pequenos dela. Braços fortes de homem feito, mas que sabiam ser delicados caso o mundo fizesse questão. Ela não se moveu, ainda encostada no carro e fixando o olhar não mais escondido, no olhar desprotegido dele. Então ele chegou mais perto, a segurou forte, leve, os olhos se fecharam naturalmente, mas os olhares mantinham-se inevitavelmente entrelaçados. Como se tivessem colado seus cílios abertos e invadissem toda a escuridão perdida do outro. Enxergavam tudo, de qualquer forma.
Um pouco montanha-russa, um pouco carrossel, estavam sozinhos no mundo. Não sozinhos, porque tinham um ao outro, mas não tinham, porque o filme acaba, o chá esfria, a cortina fecha. Mas tinham aquilo, o mundo girando tão doce quanto intenso, Paris. They knew they would always have Paris. Ficaram mais um tanto daquele jeito, pálpebras cerradas, quase mortos, mas mente tão viva, movimentos subindo do mais profundo prestes a jorrar qualquer quê por todos os orifícios. Pe-ris-tal-tis-mo, algo assim, mas mais forte. Conservaram o silêncio por muito tempo. Muito mesmo, porque quando perceberam, a lua já ameaçava esconder-se contornando os prédios altos do céu azul-petróleo. Pega-pega com as estrelas que fugiam das nuvens mais próximas.
Silêncio completo, saciado. Quase instigante, já que sabiam que nenhuma palavra trivial ou interessante podia explicar aquilo tudo na mesma rigidez arrastada, tão perfeita.
Então ela começou a rir sozinha, tão sincera, pensando em como queria tanto a semana toda, mesmo que não soubessem direito como lidar com, mesmo que tudo ficasse tão distante. Pensou que ele era experiente, dono de si, confiante, e que logo após aquele único segundo em que ela se sentia dele – e o sentia dela, as costas de um daria para as costas do outro, e ele pensaria o resto da semana em quaisquer outras mulheres, quaisquer outras coisas, porque era assim que ele era. Meio sem sentimentos, meio espertinho e tão frio, enquanto ela passaria de novo por aquela tortura estranhamente deliciosa, feito pimenta doce na língua e ardendo pela garganta.
Então ele quase que instantaneamente passou a rir com ela, tão certo de que tinha passado por todo aquele esgoto quase sem-fim para como sempre encontrar a saída, ai como era bom estar ali, mas que ela era só mais uma menina tentando ser mulher, embora muito esperta, meio imatura para todo aquele turbilhão que ele achava que sentia, e que ela passaria o resto da semana saindo com as amigas ou declamando ironias tão indecifráveis, enquanto ele pensaria nela.
Ele conteve o riso, estava ficando tarde. O tempo voava, lançando seu fardo sadicamente sobre os dois. A chuva invisível cessou.
- Tenho que ir, amanhã tem aula.
Ela não entendeu, era sexta-feira.
- Tu tem aula sábado?
Perguntou, já criando teorias complexas sobre ele estar mentindo, sobre ele estar odiando tudo aquilo e querendo ir logo embora para qualquer outro lugar.
- Amanhã é sexta. Te perdeu no tempo? Segunda foi feriado. Tu também tem que dormir cedo.
Ela ficou imóvel. Não porque queria, mas porque não conseguia se mexer. É claro! A mudança de horários, a rotina que foi quebrada. Era quinta-feira, era sim, e ele estava ali. Audacioso, corajoso, hipnotizado, manipulado ou abduzido, ele estava ali. Não conseguiu conter o sorriso grosso que se instaurava de orelha a orelha, quase que tomando conta de todo o seu rosto largo, seus olhos pequenos, seu cabelo liso-mechado. Quase sem pensar, sem nem conseguir falar direito – porque a boca não fechava – ela forçou o máximo que conseguiu.
- Quero te ver na próxima segunda.
E riu. E ele também riu, e deu um beijo curto, desejou boa noite e se virou – um pouco dela, um pouco certo – foi embora ainda falando algumas palavras que ela não conseguiu entender, alguma coisa sobre como a lua, ou o dia, ou a audácia, ou ela, ou.
Dormiram bem, sem sonhos profundos ou suores gelados, dormiram rapidamente, sem terem que procurar novas posições ou fixarem o olhar de agonia no teto.
Foram ao cinema na sexta, ela odiou o filme. Barzinho no sábado, ele não conhecia música alguma. Casa de uns amigos no domingo, deitando pelos sofás e camas alheias.
E na segunda-feira ela desceu (sem rímel), para abrir o portão.
Tinha acabado de acordar.


'Que coisas são essas que me dizes sem dizer, escondidas atrás do que realmente quer dizer? Tenho me confundido na tentativa de te decifrar, todos os dias. Mas confuso, perdido, sozinho, minha única certeza é que de cada vez aumenta ainda mais minha vontade de ti. Torna-se desesperada, urgente. Como pude cair assim nesse fundo poço? Quando foi que me desequilibrei? Não quero me afogar: Quero beber tua água. Não te negues, minha sede é clara.'

10 comentários:

Anônimo disse...

deliciosamente envolvente, como sempre Marcelli.

Fê. disse...

eu acho que foi melhor texto teu que já li!!!
mil beijoooos mc

Edu disse...

Tinha acabado de acordar (sem rímel)... por quê?

Ela sonhou com tudo?
Tudo perdeu a intensidade?
Ela ainda assim apostou no relacionamento?
Ela percebeu que não daria certo?

Adoro textos que permitem que escolhamos o nosso próprio final!

Unknown disse...

achei que estava lendo caio fernando abreu! lindo.

Unknown disse...

MARCELLI!!! que texto maravilhoso!!!! demais demais demaisssssss!! publica!!! beijos caca

Fê. disse...

gostosona tu hein! HAHAHAHAHHHHAA
TA NA FITA :P

Ricardo Leitão disse...

Nossa..........
Que decepçao pela falta de coragem para pelo menos poder dizer que tinha a pretensão....
Bater na porta. Quando tudo é tão simples, e que a gente é que complica.
Ou que a gente é que nao acredita. Mais ainda, a gente que acredita na coisa errada. Ou seriam os outros?
Tu escreve muito bem.
Com todo respeito, APAIXONANTE. Mais ainda, enciumado. Não do modo como o afetado verá, mas pela felicidade, que desejo que tu tenhas. Que queria eu ter, sem querer que tu não a tenha... difícil explicar....
Tu escreve muito bem.
Beijos
ps. O Belchior está desaparecido. De verdade.

Anônimo disse...

parabéns! lindo...

Anônimo disse...

caralho, muito bom!

Anônimo disse...

Bonito.